Elisabete
e Paulo Afonso chegaram juntos à sala de espera. João Pedro estava inquieto,
roendo as unhas. As crianças ansiosas querendo saber quando terminaria o exame.
Ao verem os dois chegando logo perguntaram:
-
Acabou o exame? Podemos ver o vovô?
-
E aí Afonso, como está o papai? – perguntou Pedro.
-
Vamos dar uma volta Pedro.
Impetuosamente
Carolina se colocou à frente do tio e exigiu:
-
Tio, você não respondeu. Como está o vovô? Já podemos entrar?
Paulo
Afonso com os olhos ainda vermelhos não conseguiu mentir à sobrinha. Segurou-a
pelos braços enquanto todos olhavam em silêncio. Tomou fôlego e finalmente
esclareceu aos sobrinhos a verdade:
-
Carol, acontece que o vovô Antônio está dormindo profundamente.
-
Ele morreu?! – questionou aflita.
-
Não. Ele não morreu. Não sabemos direito porque, mas ele adormeceu, está em
coma. Num sono profundo e nós não sabemos quando vai acordar.
Tiago,
André e Vanessa acompanhavam atentamente a explicação do tio. Cada um sentiu
dentro de si uma coisa estranha. Tiago ficou perplexo, como se de uma ora para
outra sua cabeça ficasse vazia, seu corpo mole, sem controle dos movimentos.
André sentiu um frio na barriga, uma pontada na cabeça, um medo terrível de não
sei o quê. Vanessa sentou no sofá, colocou as mãos no rosto e começou a chorar
convulsivamente. Elisabete abraçou-a enquanto Pedro passava as mãos pela cabeça
sem saber direito o que fazer. Carolina fez um gesto como se estivesse
engolindo todos os sentimentos que surgiram de repente.
A
esta altura o vaso com Cenotita e Cenorramaria estava esquecido, quando
Carolina, num gesto de profundo amor, pegou-o e disse:
-
Se meu avô está num sono profundo, ele vai acordar. E, quando ele acordar verá
perto de si o que sempre gostou. Aquilo que lhe deu tanta alegria. Podemos
deixar o vaso no quarto?
-
Pode Carol – respondeu Elisabete. – O doutor Aloísio permitiu. Só que você não
pode entrar no quarto, tem que ser um dos adultos.
Vanessa
parou de chorar, levantou-se do sofá, foi ao encontro da prima, pediu o vaso e
voltando-se para o pai pediu:
-
Papai, leva o vaso para o vovô. Diz pra ele que nós estamos esperando que ele
acorde logo. Ele ainda tem que me ensinar a colocar minhoca no anzol.
Pedro
olhava a filha com olhos arregalados. Procurou ajuda no olhar dos irmãos.
Viu-se diante de si mesmo, diante da mais pura realidade, enfrentar de frente o
pai agora inconsciente, sem ter a certeza de estar sendo compreendido. Pegou o
vaso, olhou-o como se estivesse pedindo ajuda. Cenotita e Cenorramaria sentiram
a angústia de Pedro, também estavam aflitas. Dirigiu-se ao quarto e por sorte,
o doutor já havia avisado a enfermeira que não impediu a entrada de Pedro.
Entrou,
avistou o pai e num relance se lembrou da mãe sendo velada. Apertou o vaso
contra o peito e como se estivesse em câmera lenta foi se aproximando. Seus
olhos buscavam algum movimento no corpo do pai estendido sobre a cama. Uma fresta
de sol parecia querer chegar ao rosto do enfermo. Tubos, máquinas, ..., o que
estaria ele sentindo? Onde estaria sua consciência agora? Num outro mundo? Ali
mesmo? Por que não acordava?
Quando
deu por si estava perto o bastante para ver o rosto pálido e envelhecido
daquele homem que tantas vezes fora ofendido por seu jeito simples de ser.
Quantas vezes desejou ter um pai de terno e gravata e não um caipira de galocha
e chapéu de palha. Quantas vezes impediu que suas namoradas conhecem o pai
feio, sem modos galantes, que falava errado. Quantas vezes desejou crescer logo
para sair daquela casa cheia de enxadas, bichos e mal arrumada.
Se
pelo menos tivesse a certeza de que o pai o ouvia, seria este o momento de
pedir perdão. Seria este o momento para dizer que nenhum lugar no mundo é tão
quente de calor quanto a velha casa de Céu Azul. Que nenhuma mulher faz um café
tão cheiroso quanto aquele passado às 4h00 da madrugada pelas mãos cheias de
calos do velho pai. Nenhum colo é tão macio quanto o do ultrapassado pai. Ah,
se pelo menos ele o estivesse ouvindo.
Sem
perceber Pedro falava baixinho tudo o que estava pensando. Cenotita e
Cenorramaria ouviam-no e emocionadas choravam. Em seus coraçõezinhos elas
refletiam, por que as pessoas só criam coragem para serem elas mesmas diante de
uma situação muito grave? Por que não falam sempre o que sentem e pensam? Por que elas têm tanto medo de serem
criticadas, ridicularizadas? Por que passam a vida toda escondendo os
sentimentos mais belos? Quantas pessoas morrem sem um dia terem dito ao outro o
quanto o amava. Os humanos são estranhos mesmo.
Pedro
não sabia direito como ficar. Sentava, ficava em pé. Como era difícil ficar
olhando aquele corpo com vida apenas aparente. Quantas vezes teve o ímpeto, a
vontade de abraçar aquele corpo, mas por insegurança, por medo de rejeição, não
o fez. Quantas vezes abriu a boca para pedir àquele corpo um beijo, um chamego,
e não pediu, por medo de rirem de sua necessidade. E se Antônio morresse?
Levaria para o túmulo o calor que Pedro tanto precisava. Ah, Deus, ele daria
tudo para que o pai voltasse.
Quando
deu por si estava ao lado da cama, olhando para o rosto do pai. Quantas
semelhanças os dois possuíam: o nariz, a boca com lábios grossos, a falha das
sobrancelhas. Como é infinitamente maravilhoso perceber que se é uma parte do
outro. Um é parte do outro e todos somos parte de Deus. Como pôde viver tanto
tempo sob seu próprio cabresto? Como pode temer ser rejeitado afetivamente. Se
o pai o rejeitasse, estaria rejeitando a uma parte de si mesmo.
Pedro
embriagado por seus sentimentos nem percebeu que falava em voz sussurrada tudo
o que se passava por sua cabeça.
Como
com Paulo Afonso, a enfermeira veio e pediu para que saísse. O paciente deveria
ficar só. Precisava ser avaliado e medicado. Pedro balançando a cabeça em sinal
afirmativo quando saiu do quarto.
(Continua...)