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Gosto de compartilhar pensamentos e vivências, porque ao retirá-los de mim posso enxergá-los melhor.

sábado, 28 de abril de 2012

O caixa eletrônico


Seus olhos fixos na lixeira de alumínio com detalhes em preto pareciam emitir laser.  Imaginou-se abaixando, pegando a lixeira com as duas mãos e lançando-a contra o teclado do caixa eletrônico. A proteção que envolvia o computador se romperia, e o teclado que a havia enganado inescrupulosamente, submergiria e lhe entregaria seu dinheiro.


Os tensos minutos de espera pela resposta à solicitação de saque, mais pareciam horas. Abusando do poder de posse das mágicas cédulas, a máquina processou seu suplício e ironizou sua necessidade. O dinheiro estava ali, seria só esticar a mão e pegar, se não fosse o sarcasmo metálico falando mais alto e mantendo as cédulas encarceradas.


          Está certo que aquele dinheiro na verdade não era totalmente seu, mas o banco o havia oferecido generosamente por cartas, e-mails e no próprio extrato. Não havia muita escolha, ou aceitava e devolvia com juros e correções, ou deixava o carro sedento por combustível dormir sossegadamente no estacionamento do hipermercado.


          Era uma tarde comum, com pouco movimento, então o espetáculo da destruição do caixa eletrônico seria visto pelos funcionários das pequenas lojas. E enquanto se dirigisse à saída diria aos gritos que voltaria com a polícia. Certamente ouviria alguém dizer:


- Ai vai uma louca!


Pensou no quanto estaria sozinha, porque mesmo as mulheres ao seu redor, naquelas lojas de cosméticos e acessórios não lhe seriam solidárias e confirmariam a tese de sua loucura. Porque as pessoas ficam indignadas e clamam por justiça, mas quando veem outro fazer a mesma coisa, abaixam a cabeça e fingem não ver.


Então ouviu uma voz irritada:

- Vai demorar muito aí? Tem mais gente querendo usar o caixa.


Como que despertando de um pesadelo, voltou-se para as pessoas atrás de si e respondeu quase como um robô:


           - O caixa está com defeito.

         

terça-feira, 24 de abril de 2012

Sou água

        Há quem me considere fogo, pela força que demonstro, mas sou água. Assim como a água se molda ao seu recipiente, moldo-me à vida e às situações que ela me traz. Não como um processo de acomodação passivo e submisso, mas como uma estratégia de possibilidades. Não é o recipiente que controla a água, é a água que preenche e dá sentido ao recipiente. A água sempre será água e fonte de vida, enquanto que o recipiente será apenas um adorno ou um objeto privado de utilidade se não contiver água. Assim sou eu, água que se permite conter, armazenar e transportar pelos recipientes que a vida me apresenta.  

        Já preenchi copos de vários tamanhos e modelos. Saciei a sede de muitos sedentos que num único gole ou em vários, sorveram-me sem remorsos. Já preenchi piscinas onde muitos me usaram para sua própria diversão. Já lavei a sujeira de uns tantos e carreguei os dejetos de outros. Sempre me moldando, adaptando-me às necessidades alheias.

       Enxergam-me mal os que me veem como fogo, porque o fogo impera, se impõe impiedosamente. Sou água e água alenta, recepciona e purifica. Mas também amedronta aqueles que não respeitam os seus limites. Assim sou eu.

       A água depois que sai da fonte e é colocada num recipiente, deixa de ser dona de seu destino e passa a trilhar caminhos que não escolheu. E o que poucos sabem é que o desejo maior da água é voltar à sua origem. Assim sou eu. Hoje, não há mais recipiente que me caiba, porque sou imensa e transbordo, pois o meu destino é voltar à minha fonte.  
       

segunda-feira, 23 de abril de 2012

O baú

            Os dias de outono são muito bons para limpezas e organizações de guarda-roupa, gaveta, biblioteca, e de tudo aquilo que as pessoas costumam deixar para depois do verão. Porque o outono recolhe, interioriza, aprofunda; ao contrário do verão que evoca o exterior, a saída, a superfície. Foi num destes dias de outono, um domingo talvez, que ela resolveu vasculhar seu tão precioso baú.

           Quando sua bisavó falecera ninguém o quisera e ela mais do que depressa o solicitou para si. Há tempos desejara um lugar para guardar seus cadernos, os quais, aliás, não eram meros cadernos, eram verdadeiros manuscritos sagrados e intimistas. Desenvolvera o hábito de escrever seus pensamentos, pontos de vista, sonhos, desejos, angústias e alegrias. Como se ao escrever retirasse aquele sentimento de dentro de si e o guardasse, agora num perfeito lugar: um baú.

           Desejava, neste domingo outonal, revirá-lo. Não sabia por que, mas desejava abri-lo, vasculhá-lo. Seria saudosismo? Curiosidade? Confronto entre o ontem e o hoje? Fosse qual fosse a resposta o desejo de reler-se era o que imperava.

          Quando todos na casa já dormiam, pegou a antiga chave que guardava no criado mudo, dirigiu-se ao velho baú que inerte repousava, introduziu-a na fechadura em forma de silhueta feminina e girou. O estalar do movimento fez com que seu coração hesitasse por um segundo, conseguiria levantar a tampa e ver o que ali repousava? Quantos sonhos estariam guardados, quantas angústias sufocadas, quantos amores não vividos? Culpas? Remorsos? Incompreensões?! E se tudo isso criara vida e habitasse um mundo fantasma e esses fantasmas desejassem agora assombrá-la por permanecerem prisioneiros em um baú? Tudo estava tão bem. Valeria a pena remexer o passado?

         Sentiu gotas de suor escorrer das axilas, não estava calor, era o medo, o medo do conhecido agora desconhecido. E se ao reler seus cadernos todos os sentimentos voltassem? Aguentaria mais uma vez? Sentou-se no chão e por um momento pensou em desvirar a chave. Abaixou a cabeça, esfregou os olhos e pensou que não havia sentido em tanto temor, ali estaria a sua história, nada além.

        Uma chama de desejo se formara em sua alma, o suficiente para que se colocasse de joelhos frente ao imóvel baú. Suas mãos estavam nervosamente trêmulas e quando já iniciava a abertura da tampa, uma dúvida penetrou sua alma. Ali estava sua história, mas qual história? A triste? A feliz? De qual momento, de qual vida, pois se sentia como alguém que vivera várias vidas. E se fosse a história de uma vida que não quisesse se lembrar? Então se sentou sobre os calcanhares e com os olhos fixos no baú permaneceu.

         Estava agora na meia-idade e não se permitia mais certas angústias da juventude. Não desejava viver das lembranças do passado, mas ultimamente seus sonhos e lembranças despertaram-lhe o desejo de reler seus cadernos, de abrir o baú. Estaria numa fase de transição? Seriam estas reações reflexos da idade? Tantas perguntas para poucas respostas. Estariam as respostas no seu velho e agora tão misterioso baú?

      Com o coração acelerado, a fronte banhada em suor, colocou-se ereta frente aquele monte de madeira velha que guardava trechos da sua história e, com as duas mãos levantou a tampa.



quinta-feira, 19 de abril de 2012

Numa manhã encantada na Floresta Encantada


Algo encantador aconteceu, pelo menos para aqueles que gostam e acreditam em coisas encantadas.

- Você é uma escritora lenta! – disse ironicamente sapinha Marrom.

- Como você quer que eu escreva se não tenho inspiração? – respondeu tristemente sapa Verde.

Jogando o corpo para trás, num gesto de domínio da situação, exclamou sapinha Marrom:

- Ah...Verde! Escrever é mais do que inspiração, é preciso praticar muito, dominar as regras da escrita, escrever, reescrever, pedir a opinião de um leitor...

- Bem sei, Marrom. Mas também sei que se não houver algo dentro de nós que nos mova os desejos, nada escreveremos.

- Então você precisa despertá-los.

Ao ouvir tais palavras, Verde levantou os olhos e se deparou com aquele olhar investigador, revelador de um esquema mental digital, porque analógico é coisa do passado, era aquele olhar que há tempos já conhecia. Então pensou: “Fodeu”.

- Vamos Verde, daremos um passeio pela floresta e se depois disto você não se sentir inspirada, escreverá sobre tua falta de inspiração.

Sem dar tempo de decisão à Verde, a sapinha, atrevida, puxou-a pela mão.

Saltitaram entre folhas, gramados, poças d’água, teias de aranhas, ervas medicinais, árvores frutíferas, tijolos velhos e madeiras. Pararam diante de cada elemento que Marrom usava como fonte de inspiração para a escritora:
- Então, o que vê? Sente-se inspirada? Você escreveria sobre isto?

- Sobre o quê?

- Sobre um pedaço de madeira.

- Talvez, mas o que eu diria?

- Não sei, você é a escritora aqui.

- Acho que não.

- Está bem, então vamos saltar um pouco mais.

E sapinha Marrom segurando a mão de Verde a levava para outro ponto de observação. Assim passaram toda a manhã sem que Verde tivesse alguma inspiração significativa o suficiente para escrever, fosse uma poesia, um conto, uma narrativa ou qualquer outra forma de literatura.

Já cansadas de tanto saltitar e com muita fome, decidiram sentar-se para comer. Como era seu costume quando saia, sapa Verde levara um lanche de moscas em conserva, pois não sabia se encontrariam lugar para comer. Não menos prevenida, sapinha Marrom levara seu lanchinho de patê de moscas e sua bebida preferida: suco de insetos fermentados.

Escolheram o lugar com mais limbo, debaixo de uma costela de Adão. Organizaram uma espécie de mesa de piquenique e começaram a comer. A conversa fluía naturalmente, se recordavam dos lugares por onde haviam passado e riam com as reações uma da outra. Nem perceberam o tempo passar. Quando o alimento já havia desaparecido de diante de seus olhos e juntavam as coisas para voltar, sapa Verde sentiu uma imensa ternura por sapinha Marrom e olhou dentro de seus olhos. Sapinha Marrom que guardava seus pertences sorriu, desviou o olhar e disse:

- Por que você me olha assim? Teus olhos brilham tanto que ofuscam os meus.

E então sapa Verde sentiu-se inspirada a escrever sobre o brilho dos olhares daqueles que se querem bem. Depois de várias correções, publicou em seu sapoblog e muitos outros sapos e sapas puderam compartilhar esta experiência.




quinta-feira, 12 de abril de 2012

Casaco de lã


De repente ocorreu-lhe que deveria fazer para si um casaco de lã, porque o inverno se aproximava e neste ano ele seria rigoroso. Não sabia tricotear, apenas acreditava que aprenderia facilmente, já que há tempos observava as tricoteadeiras. Tentara começar só, mas alguém lhe explicara que tricotear era algo a ser feito em conjunto. Sendo assim havia a necessidade da presença de uma tricoteadeira-experiente para ensiná-la. Providenciou seu novelo azul celeste. Cheia de planos e vislumbrando o casaco de lã que a protegeria das intempéries invernais, pôs-se a aprender junto à sua mestra e às outras alunas.

          Tinham cada qual seu novelo num único cesto, de modo que, se a linha de alguém por algum motivo se rompesse, correria o risco de perdê-lo em meio a tantos outros. Havia uma grande diversidade de cores no cesto e eram muitos os pontos ensinados. Cada qual havia lançado seu novelo ao cesto e agora apenas se preocupava em tricotear seu próprio ponto em seu próprio casaco.

Na noite em que os casacos estavam pela metade, um gato apareceu e de mansinho começou a roçar-se nas pernas das tricoteadeiras. Brincou com o cesto, misturou as lãs e dormiu tranquilamente. Como estavam tão concentradas na execução de seus milhares de pontos e sentindo-se afagadas pelo felino, mal o perceberam no cesto. Na manhã seguinte as tricoteadeiras ao se depararem com o cesto remexido e suas lãs misturadas, puseram-se a esbravejar uma contra outra:

- Este casaco não é o meu, o ponto que faço é mais largo!

- Eu tricoteio pontos falsos, este é definido demais!

- Eu nunca faria um casaco desta cor!

A tricoteadeira-experiente chegou bem no auge da discussão. Abalada por ver seu trabalho de ensinar ameaçado e pela possibilidade dos casacos não estarem prontos até a chegada do inverno, enfureceu-se tanto que acabou ferindo-se nos olhos com as agulhas. Impossibilitada de ver as coisas como elas realmente eram deixou-se guiar pelas vozes para descobrir de quem fora a autoria de tamanha desordem. Como haviam gostado do roçar do gato em suas pernas, nem sequer passou-lhes pela cabeça que havia sido ele. Então alguém se lembrou de que faltava uma tricoteadeira, alguém que não estava no momento da discussão e, como não estava presente para se explicar, resolveram acusá-la. De imediato a tricoteadeira-experiente, que não podia ver, mas que confiava em sua audição acatou a ideia. Seria mais conveniente que encontrassem logo um culpado e justificassem o feito para que voltasse a harmonia e tudo continuasse a ser como era antes.

Redistribuíram como puderam seus casacos e separaram o mais incompleto deles para a acusada. Afinal de contas ela não poderia reclamar o seu já que não estava presente para identificá-lo.

Ao chegar, a acusada percebeu o feito e sem poder argumentar, simplesmente recolheu o casaco incompleto e passou a tricoteá-lo. Mantinha-se absorta em sua tarefa e nas poucas vezes que parava para descansar, via em outras mãos o que havia sido seu casaco. Percebia a dificuldade da tricoteadeira em continuá-lo, abaixava sua cabeça e logo voltava aos seus pontos.

Na última noite do outono todas deveriam desfilar seus casacos para a tricoteadeira-mestra que ainda não voltara a enxergar. Uma das alunas estava encarregada de narrar-lhe os fatos. Começaram então a desfilar e o que se via eram casacos apertados ou largos demais, compridos ou curtos demais, coloridos ou sem cores. Muitos eram os sons de espanto e interrogações. Até que entrou a última tricoteadeira, a que lhe restara o casaco incompleto, e um silêncio pairou.

- Por que este silêncio? – perguntou a mestra.

- Temos um casaco perfeito, senhora.

- E de quem é? Fale-me para que eu possa felicitá-la.

O silêncio de antes se tornara constrangedor, até que alguém disse:

- É o casaco da tricoteadeira acusada.

Tateando, a mestra aproximou-se e perguntou:

- Como você conseguiu tal feito, minha querida?

Olhando a todas de modo tranquilo e radiante, respondeu:

- O meu casaco não era apenas um casaco, era o meu sonho. O sonho de não passar frio, sonho de construir algo que me protegesse. Ele existiu primeiro em meu coração e minha mente. Quando vocês me acusaram e me entregaram um casaco incompleto, retiraram de mim algo que eu já havia construído, mas não retiraram o meu sonho, a minha esperança. Entregar-me um casaco incompleto não foi um mal, mas uma bênção naquela situação, pois eu pude continuar o meu sonho, aquilo que ainda estava em minha mente e meu coração. Vocês não conseguiram terminar seus casacos porque roubaram umas das outras àquilo que já estava avançado, quase concluído. Vocês somente pensaram em suas próprias vantagens e não conseguiram tornar realidade seus sonhos, tentaram adaptá-los ao que tinham em mãos, não tiveram a coragem de desmanchar e começar novamente. E então os olhos da tricoteadeira-mestra voltaram a enxergar.


terça-feira, 10 de abril de 2012

Meu direito ao voto


             Num destes dias em que a gente já levanta cansada, desliga o despertador automaticamente, toma um banho, ingere aquele mesmo café, passa um borrão na cara, entra no carro, fecha o portão, liga o rádio na mesma rádio de todos os dias e zumbimente, se é que existe esta palavra, vai ao trabalho, foi que me dei conta de que estamos em ano eleitoral. Isto porque a propaganda transmitida incentivava o jovem de dezesseis anos a adquirir seu título de eleitor e votar. O jargão era qualquer coisa sobre fazer a diferença, o que me trouxe à consciência uma doce e terrível lembrança dos meus dezesseis anos.

Havíamos nos conhecido no grupo de perseverança da igreja católica, cuja padroeira era para mim não uma santa, mas um ídolo: Santa Joana D`Arc. Uma mulher vestida de soldado! Literalmente uma batalhadora, considerada por muitos uma louca. Débora me havia sido apresentada por uma colega da escola. Um ano mais nova do que eu e completamente maluquinha. Maluquinha de pedra.

Ela sempre usava uma saia comprida preta e uma blusa de gola alta branca. Tinha cabelos compridos e sempre os mantinha preso, pois era bastante armado. Lembro-me do seu sorriso e dos dentes encavalados na frente. Era exagerada ao sorrir, praticamente escandalosa.

Aos sábados pela manhã nos encontrávamos no salão paroquial. Ali cantávamos, tocávamos, encenávamos, debatíamos e, claro, paquerávamos. Tínhamos naquele espaço o nosso cenário. Sabiam nossos nomes e nos respeitavam. Demorávamos o máximo que podíamos no desejo de não nos separar, de não voltar para a casa e depararmo-nos com os afazeres domésticos, as broncas dos pais, as birras dos irmãos menores e nossa própria solidão interior.

Desenvolvemos um tipo de relacionamento onde eu era considerada a mãe e ela a tia. Nossos colegas eram mais jovens ou mais velhos dois anos ou menos, mas nos tratavam assim como mãe e tia. Sempre que podíamos organizávamos um baile na casa de alguém, cujo pai e mãe concordavam. Então, a motivação era voltar para casa, preparar um bolo ou comprar um refrigerante, colocar a roupa de festa e voltar a pé para a casa do anfitrião. Dançávamos Família do Titãs e Polícia, nos emocionávamos escutando Monte Castelo e nos sentíamos revolucionários cantando Zé Geraldo, principalmente Milho aos Pombos. Às vezes acontecia uma dança romântica com algum garoto interessante, um abraço mais apertado e até um beijo.

Estudávamos na mesma escola. Ela estava um ano atrás de mim, eu no primeiro ano do médio e ela na antiga oitava série. Então nos víamos todos os dias. Não havia facebook, o que usávamos eram cadernos de enquete ou diários. Ah...era uma verdadeira prova de amizade quando uma amiga nos deixava ler seu diário ou preencher seu caderno de enquete. Nossa maior preocupação era ler as respostas dos outros.

Vivíamos num tempo político difícil.  Algumas vozes começavam e levantar-se a favor do povo e dos pobres. Foi nesta época que descobrimos a política de esquerda e começamos a escolher nossos ídolos: Che Guevara, Nelson Mandela, Gandhi, Raul Seixas e até nossa coordenadora da perseverança, especialmente para mim.

Seus pais eram extremamente rigorosos, não a permitiam sair se não fosse para a igreja, então fazíamos nossas reuniões e debates dentro da igreja. O máximo que nos permitiam era ir à feirinha aos domingos. Andávamos a pé, por cinco quilômetros e usávamos o dinheiro do ônibus para comprar balas geladas.

Nosso sonho? Comprar uma boina igual ao Che Guevara e votar. Era 1989, ano eleitoral para presidente da república, quer honra maior do que votar em um candidato a presidente? Quanta confusão nós fizemos na escola com debates fervorosos. Eu sempre era levada para a salinha para uma conversa ao pé do ouvido.

Eu teria direito a votar, porque completaria dezesseis naquele ano, antes das eleições. E foi uma das primeiras coisas que fiz após meu aniversário. Ela teria que esperar as próximas eleições. Sempre me fazia prometer que contaria como era a urna, que sensação eu teria, como era a cédula e tal.

Estávamos no mês das quermesses e competia ao nosso grupo cuidar do oferecimento das músicas na festa. Neste fim de semana ela não poderia trabalhar porque viajaria à Bragança Paulista com seus pais, irmão e dois pedreiros. Seu pai comprara um terreno e tinha planos de construir uma casa de campo. Chegou a convidar-me, mas teve que desfazer o convite já que não caberíamos no carro. “Fica para uma próxima” eu falei.

Em grupo e sem sua alegre presença trabalhamos nas apresentações das músicas no sábado, dançamos a quadrilha invertida onde os garotos se vestem de mulher e as mulheres de homem e no domingo esperávamos que ela pelo menos passasse pela festa para comer um doce. O que não aconteceu.

Na segunda-feira fui à escola pela manhã e não a encontrei. Na segunda aula uma inspetora chegou à porta e chamou pelo meu nome dizendo que havia uma pessoa a minha procura. Apreensiva, desci os três lances de escada e avistei uma amiga do grupo de jovens. Ela me olhou nos olhos e disse: “A Débora não voltou para casa ontem...”. Sua pausa paralisou minha respiração, num daqueles momentos em que o cérebro não consegue processar. E completou: “E ela também nunca mais voltará”.

Foi um dos velórios mais tristes e inexplicáveis dos muitos que já vivi. Em uma sala quatro caixões completamente lacrados, sendo o branco de seu irmão de oito anos. Em outra sala dois caixões também lacrados, duas viúvas e seis filhos órfãos. Soubemos que ela fora reconhecida por sua saia preta e longa. Tudo por culpa de um caminhão que trafegava na contramão na rodovia Fernão Dias.

Até hoje, todas às vezes que me dirijo à urna é como se eu lhe rendesse um tributo.








Minhas aulas de espiritualidade



Estava eu ajoelhada no gramado, retirando as tiriricas que nascem em meio à grama e outros matos quando uma pessoa passou e me disse: “É por isto que eu não tenho um gramado, dá muito trabalho. Nem pensar em ficar ajoelhada por horas retirando mato com a mão; depois chove e cresce tudo de novo. Prefiro deixar tudo crescer e jogar veneno”.

Sem parar de trabalhar respondi: “Eu gosto de fazer isto, para mim não é trabalhoso, eu só sinto não ter mais tempo. E se eu jogar veneno no mato apenas terei um terreno limpo e infértil”. O que ouvi como resposta foi: “Ah, eu é que não vou ter todo este trabalho”.

Eu não sabia ao certo porque me sentia bem fazendo um trabalho tão absurdo aos olhos de outros, e sem que eu buscasse, uma lembrança voltou à minha mente naquele momento.

“Há dois anos tínhamos aulas de espiritualidade no convento dos frades franciscanos capuchinhos. Levantávamos, fazíamos nossas orações, algumas atividades domésticas e como duas ovelhas que já conheciam o caminho do curral, silenciosas, íamos de uma cidade à outra para aprender sobre espiritualidade com Frei H. Chegávamos um pouco antes do almoço que era servido religiosamente ao meio-dia. Trocávamos algumas palavras sem importância com a cozinheira, uma senhora alegre e falante. Sentávamo-nos à mesa, nos lugares reservados às visitas e após uma breve e triste oração começávamos a comer.

A comida era sempre abundante e as conversas quase monólogos. Eu não sabia muito bem o que conversar com pessoas santas e temia dizer algo inadequado. Quase sempre quem falava era frei H. Com quase 80 anos, ainda usava hábito franciscano, cabelos e barba brancos, sua aparência era a de um bom velhinho. Mas suas conversas eram quase sempre lamentos. Lamento da infância perdida, da ausência e saudade dos pais que o internaram num convento por serem muito pobres, da faculdade de medicina que nunca cursara... O alimento quase sempre me descia pesado e amargo, por mais saboroso que estivesse. Por que nunca saíra do convento? Por que nunca deixara de usar aquele hábito? Que triste era chegar a tal ponto da vida e lamentar o que vivera. Seria comigo também assim?

Tudo deveria acontecer dentro do horário, então ao meio-dia e meia nos levantávamos e frei H. se retirava para a siesta, numa sala que não podíamos entrar e que mais tarde descobri que havia uma televisão e sua siesta, consistia em assistir ao programa Chaves, um programa mexicano transmitido durante muitos anos na televisão brasileira. No qual o personagem principal é um menino de rua que vive num barril no meio de um cortiço. Talvez frei H. se visse naquele menino de calças curtas e suspensório.

Como visitas educadas que éramos nós enxugávamos e guardávamos a louça, e a uma em ponto nos dirigíamos à sala de estudos. Era um lugar lúgubre, com uma mesa de madeira de lei, cristaleiras, livros e num canto um arcanjo também de madeira sempre me olhando com uma lança na mão. Sentávamo-nos sempre no mesmo lugar e então frei H. abria um livro que não me recordo o nome e começava um interrogatório que eu nunca sabia como explicar. Queria ele saber como vivíamos, como nos relacionávamos na fraternidade, como resolvíamos nossos conflitos e etc. Sempre respondíamos da melhor maneira possível, com a visão de duas jovens de 19 anos, cheias de sonhos e fantasias sobre fazer o bem ao próximo, viver como irmãos, amar a Deus sobre todas as coisas etc e tal. Ouvia-nos com um sorriso no canto da boca e então nos dizia: “Isto não existe. Não há comunidades perfeitas”. O que para mim era tentador comentar, ou pelo menos questionar, mas o medo de revelar-me incrédula e descrente me calava. O medo de parecer mais frágil do que minha colega me calava. E o medo das consequências me emudecia.

Passava-se então uma hora e meia de palavras e explicações às quais não me recordo nem sequer uma frase. Éramos convidadas a tomar um café com rosquinhas e podíamos dar uma volta pelo quintal. E foi numa destas voltas que vi frei B., tão velho quanto frei H., mas sem hábito, agachado diante de uma horta, com uma lata ao seu lado. Pacientemente ele retirava uma por uma das tiriricas e às lançava na lata. Como eu nunca sabia o que dizer, apenas olhava quando minha colega comentou: “Que trabalheira frei B., retirar uma por uma das tiriricas”. E sem parar de trabalhar respondeu: “Não faz sentido ter uma horta e deixar as tiriricas. É preciso cavar fundo e retirar até a última batatinha, jogar na lata e colocar fogo. Se você não fizer assim, elas crescem de tal maneira que você nunca mais consegue se livrar delas, precisará desfazer a horta e começar tudo novamente”. Eu me perguntei se valia a pena todo aquele trabalho só por umas verduras, afinal de contas as tiriricas sempre voltariam”.

Hoje eu entendo que vale a pena todo este trabalho só para ter um gramado e uma flor no meu jardim.