Num destes
dias em que a gente já levanta cansada, desliga o despertador automaticamente,
toma um banho, ingere aquele mesmo café, passa um borrão na cara, entra no
carro, fecha o portão, liga o rádio na mesma rádio de todos os dias e zumbimente,
se é que existe esta palavra, vai ao trabalho, foi que me dei conta de que
estamos em ano eleitoral. Isto porque a propaganda transmitida incentivava o
jovem de dezesseis anos a adquirir seu título de eleitor e votar. O jargão era
qualquer coisa sobre fazer a diferença, o que me trouxe à consciência uma doce
e terrível lembrança dos meus dezesseis anos.
Havíamos nos
conhecido no grupo de perseverança da igreja católica, cuja padroeira era para
mim não uma santa, mas um ídolo: Santa Joana D`Arc. Uma mulher vestida de
soldado! Literalmente uma batalhadora, considerada por muitos uma louca. Débora
me havia sido apresentada por uma colega da escola. Um ano mais nova do que eu
e completamente maluquinha. Maluquinha de pedra.
Ela sempre
usava uma saia comprida preta e uma blusa de gola alta branca. Tinha cabelos
compridos e sempre os mantinha preso, pois era bastante armado. Lembro-me do
seu sorriso e dos dentes encavalados na frente. Era exagerada ao sorrir,
praticamente escandalosa.
Aos sábados
pela manhã nos encontrávamos no salão paroquial. Ali cantávamos, tocávamos,
encenávamos, debatíamos e, claro, paquerávamos. Tínhamos naquele espaço o nosso
cenário. Sabiam nossos nomes e nos respeitavam. Demorávamos o máximo que
podíamos no desejo de não nos separar, de não voltar para a casa e
depararmo-nos com os afazeres domésticos, as broncas dos pais, as birras dos
irmãos menores e nossa própria solidão interior.
Desenvolvemos
um tipo de relacionamento onde eu era considerada a mãe e ela a tia. Nossos
colegas eram mais jovens ou mais velhos dois anos ou menos, mas nos tratavam
assim como mãe e tia. Sempre que podíamos organizávamos um baile na casa de
alguém, cujo pai e mãe concordavam. Então, a motivação era voltar para casa,
preparar um bolo ou comprar um refrigerante, colocar a roupa de festa e voltar
a pé para a casa do anfitrião. Dançávamos Família
do Titãs e Polícia, nos emocionávamos
escutando Monte Castelo e nos
sentíamos revolucionários cantando Zé Geraldo, principalmente Milho aos Pombos. Às vezes acontecia uma
dança romântica com algum garoto interessante, um abraço mais apertado e até um
beijo.
Estudávamos na
mesma escola. Ela estava um ano atrás de mim, eu no primeiro ano do médio e ela
na antiga oitava série. Então nos víamos todos os dias. Não havia facebook, o
que usávamos eram cadernos de enquete ou diários. Ah...era uma verdadeira prova
de amizade quando uma amiga nos deixava ler seu diário ou preencher seu caderno
de enquete. Nossa maior preocupação era ler as respostas dos outros.
Vivíamos num
tempo político difícil. Algumas vozes
começavam e levantar-se a favor do povo e dos pobres. Foi nesta época que
descobrimos a política de esquerda e começamos a escolher nossos ídolos: Che
Guevara, Nelson Mandela, Gandhi, Raul Seixas e até nossa coordenadora da
perseverança, especialmente para mim.
Seus pais eram
extremamente rigorosos, não a permitiam sair se não fosse para a igreja, então
fazíamos nossas reuniões e debates dentro da igreja. O máximo que nos permitiam
era ir à feirinha aos domingos. Andávamos a pé, por cinco quilômetros e
usávamos o dinheiro do ônibus para comprar balas geladas.
Nosso sonho?
Comprar uma boina igual ao Che Guevara e votar. Era 1989, ano eleitoral para
presidente da república, quer honra maior do que votar em um candidato a
presidente? Quanta confusão nós fizemos na escola com debates fervorosos. Eu
sempre era levada para a salinha para uma conversa ao pé do ouvido.
Eu teria
direito a votar, porque completaria dezesseis naquele ano, antes das eleições.
E foi uma das primeiras coisas que fiz após meu aniversário. Ela teria que
esperar as próximas eleições. Sempre me fazia prometer que contaria como era a
urna, que sensação eu teria, como era a cédula e tal.
Estávamos no
mês das quermesses e competia ao nosso grupo cuidar do oferecimento das músicas
na festa. Neste fim de semana ela não poderia trabalhar porque viajaria à
Bragança Paulista com seus pais, irmão e dois pedreiros. Seu pai comprara um
terreno e tinha planos de construir uma casa de campo. Chegou a convidar-me,
mas teve que desfazer o convite já que não caberíamos no carro. “Fica para uma
próxima” eu falei.
Em grupo e sem
sua alegre presença trabalhamos nas apresentações das músicas no sábado,
dançamos a quadrilha invertida onde os garotos se vestem de mulher e as
mulheres de homem e no domingo esperávamos que ela pelo menos passasse pela
festa para comer um doce. O que não aconteceu.
Na
segunda-feira fui à escola pela manhã e não a encontrei. Na segunda aula uma
inspetora chegou à porta e chamou pelo meu nome dizendo que havia uma pessoa a
minha procura. Apreensiva, desci os três lances de escada e avistei uma amiga
do grupo de jovens. Ela me olhou nos olhos e disse: “A Débora não voltou para
casa ontem...”. Sua pausa paralisou minha respiração, num daqueles momentos em
que o cérebro não consegue processar. E completou: “E ela também nunca mais
voltará”.
Foi um dos
velórios mais tristes e inexplicáveis dos muitos que já vivi. Em uma sala
quatro caixões completamente lacrados, sendo o branco de seu irmão de oito anos.
Em outra sala dois caixões também lacrados, duas viúvas e seis filhos órfãos.
Soubemos que ela fora reconhecida por sua saia preta e longa. Tudo por culpa de
um caminhão que trafegava na contramão na rodovia Fernão Dias.
Até hoje,
todas às vezes que me dirijo à urna é como se eu lhe rendesse um tributo.