Os dias de outono são muito bons para limpezas e organizações de guarda-roupa, gaveta, biblioteca, e de tudo aquilo que as pessoas costumam deixar para depois do verão. Porque o outono recolhe, interioriza, aprofunda; ao contrário do verão que evoca o exterior, a saída, a superfície. Foi num destes dias de outono, um domingo talvez, que ela resolveu vasculhar seu tão precioso baú.
Quando sua bisavó falecera ninguém o quisera e ela mais do que depressa o solicitou para si. Há tempos desejara um lugar para guardar seus cadernos, os quais, aliás, não eram meros cadernos, eram verdadeiros manuscritos sagrados e intimistas. Desenvolvera o hábito de escrever seus pensamentos, pontos de vista, sonhos, desejos, angústias e alegrias. Como se ao escrever retirasse aquele sentimento de dentro de si e o guardasse, agora num perfeito lugar: um baú.
Desejava, neste domingo outonal, revirá-lo. Não sabia por que, mas desejava abri-lo, vasculhá-lo. Seria saudosismo? Curiosidade? Confronto entre o ontem e o hoje? Fosse qual fosse a resposta o desejo de reler-se era o que imperava.
Quando todos na casa já dormiam, pegou a antiga chave que guardava no criado mudo, dirigiu-se ao velho baú que inerte repousava, introduziu-a na fechadura em forma de silhueta feminina e girou. O estalar do movimento fez com que seu coração hesitasse por um segundo, conseguiria levantar a tampa e ver o que ali repousava? Quantos sonhos estariam guardados, quantas angústias sufocadas, quantos amores não vividos? Culpas? Remorsos? Incompreensões?! E se tudo isso criara vida e habitasse um mundo fantasma e esses fantasmas desejassem agora assombrá-la por permanecerem prisioneiros em um baú? Tudo estava tão bem. Valeria a pena remexer o passado?
Sentiu gotas de suor escorrer das axilas, não estava calor, era o medo, o medo do conhecido agora desconhecido. E se ao reler seus cadernos todos os sentimentos voltassem? Aguentaria mais uma vez? Sentou-se no chão e por um momento pensou em desvirar a chave. Abaixou a cabeça, esfregou os olhos e pensou que não havia sentido em tanto temor, ali estaria a sua história, nada além.
Uma chama de desejo se formara em sua alma, o suficiente para que se colocasse de joelhos frente ao imóvel baú. Suas mãos estavam nervosamente trêmulas e quando já iniciava a abertura da tampa, uma dúvida penetrou sua alma. Ali estava sua história, mas qual história? A triste? A feliz? De qual momento, de qual vida, pois se sentia como alguém que vivera várias vidas. E se fosse a história de uma vida que não quisesse se lembrar? Então se sentou sobre os calcanhares e com os olhos fixos no baú permaneceu.
Estava agora na meia-idade e não se permitia mais certas angústias da juventude. Não desejava viver das lembranças do passado, mas ultimamente seus sonhos e lembranças despertaram-lhe o desejo de reler seus cadernos, de abrir o baú. Estaria numa fase de transição? Seriam estas reações reflexos da idade? Tantas perguntas para poucas respostas. Estariam as respostas no seu velho e agora tão misterioso baú?
Com o coração acelerado, a fronte banhada em suor, colocou-se ereta frente aquele monte de madeira velha que guardava trechos da sua história e, com as duas mãos levantou a tampa.
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