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Gosto de compartilhar pensamentos e vivências, porque ao retirá-los de mim posso enxergá-los melhor.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A rotina secreta

        Percebi seus olhos sobre meus ombros e não pude deixar de sentir sua respiração suave e profunda. Delicadamente beijou-me a face e se foi, dissipando-se no espaço entre dois mundos. Não era preciso dizer uma única palavra, eu sabia que aquela era sua forma de desejar-me boa noite. Permaneci escrevendo, buscando as palavras que imprimissem na tela branca o significado dos meus sentimentos. Escrevia e deletava, deletava e escrevia.
        Todas as noites era o mesmo ritual. Eu me sentava, girava a poltrona num movimento um tanto desesperado por organizar os afazeres. Ponderava as urgências e me punha a trabalhar. Lia, relia, imprimia, rabiscava. As horas passavam sem que eu percebesse, se não fosse pela fome e a dor nas costas a implorar-me pela pausa, eu me abandonaria na dança nas letras até a exaustão.
        Para que tantas urgências, obrigações e correrias? Não poderia eu apenas deleitar-me na escrita de meus confusos pensamentos? Sentar-me no sofá e embriagar-me de imagens desconexas? Qual a necessidade de tantos papéis sobre a escrivaninha, livros abertos, temas diferentes para discutir e ponderar? Qual a importância disto para o mundo?

        O porta retrato laranja com os seis ao meu redor por vezes me distraía. "Onde estariam os cinco agora?" "Quais caminhos trilhavam?" "Que escolhas e decisões haviam tomado?" De um ou outro lugar surgia alguma breve notícia: "Está terminando a faculdade em outro Estado." "Você não sabe? Se casou com um gringo e foi morar na Europa." Seus medos e inseguranças estariam superados? Desejava que fossem felizes e que o sorriso inocente daquela foto ainda iluminassem seus jovens rostos.

        Desperta de meus devaneios, meus olhos voltavam ao caderno vertical e minhas mãos já cansadas se moviam sem ritmo certo. Ora rápidas pela pressa de não perder a ideia, ora lentas pela incerteza de registrá-la. No dia seguinte, exausta pela noite de trabalho e movendo-me como se meu corpo fosse algo extra, recebia seu abraço matinal: "Dormiu bem?" Respondia-lhe vagarosamente para que cada segundo demorasse mais: "Dormi, mas ainda estou cansada." Sorria-me como quem já esperasse por tal resposta e sem mais delongas ia-se para voltar ao anoitecer.
  

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Linda Flores

        Nem sempre fui Linda Flores, alías, sempre fui várias, muitas e diversas. Angustia-me pensar que alguém possa ser sempre o mesmo, anos a fio, as mesmas ideias, os mesmos valores, as mesmas posturas, os mesmos amores. Linda nasceu a muito tempo e esteve por décadas como uma semente lançada sobre o cimento, até que a mansidão de uma brisa leve a empurrou para um terreno fértil.
        Linda Flores é intensamente mulher, irmã, mãe, amiga e amante. É lua, é desejo, é ternura, é afeto, é tesão. Só quem vê uma flor depois que cai a chuva sabe do que estou falando. Só quem já viu uma cachoeira após uma tempestade pode compreender a força destas palavras.
        Essa nova "eu" quer resgatar o muito do pouco que viveu, que expressou, que amou. Quer comunicar-se, expandir-se, completar-se, lambuzar-se nas diversas formas de amor que a vida lhe trouxer. Seja o amor amigo, o amor irmão, o amor paixão, pois descobriu que não importa a forma, importa é que haja amor. Tudo o mais é conveniência e interesse mesquinho.
        A terra que acolhe a semente adormecida é generosa e abundante. Sim, a palavra mágica é acolhimento. É o ápice do amor - acolher - trazer para si sem nada importar, além do fato de acreditar que ali há uma semente que pode germinar. Assim nasceu Linda Flores, do acolhimento, da ternura de um anjo bom que a soprou em direção da terra boa. Lançou-a nos braços da mãe terra, porque não há maior gesto de acolhimento do que o abraço. Ele está presente entre amigos, pais e filhos, amantes. É a maior expressão do acolher.
        Linda Flores - eu - inteira, sem passado, sem lamentos, sem rancores. Quero perder-me no entrelaçar dos abraços dos amigos e amigas, do amado, da irmã, da mãe terra e da lua. Hoje e sempre. Amém.  

domingo, 28 de outubro de 2012

O ninho

        Ela estava à minha frente esperando para saber se eu representava alguma ameaça. Balançava a cabecinha de um lado a outro e eu feito tonta olhando sem saber aonde ela desejava ir. O pai logo chegou e pousou no galho ao lado, observando tudo ao redor. Eu, extasiada com a coincidência de ver dois pássaros com penas azuis, exatamente da cor da capa do livro que eu lia - o livro de minha amiga escritora Mariza Lima - permanecia boquiaberta por nunca ter visto pássaro assim.
        Creio que a fêmea percebera que eu em minha tontice não a faria mal, então voou até o ninho que estava praticamente a meus pés. Modo de dizer, estava na pilastra onde a corda da rede fora amarrada, meus pés estavam naquela direção. O ninho - uma verdadeira obra de arte - estava cuidadosamente arquitetado entre os galhos da unha de gato, uma trepadeira que cultivo para alegria de meus olhos e desgosto de minha vizinha.
        Fiquei imóvel, não queria assustá-la. Como sempre eu estava com a máquina fotográfica. Gosto de imortalizar algumas cenas enquanto cuido do jardim. Bati uma, duas, dezenas de fotos, mas a distância não permitia que o zoom ficasse nítido. Eu queria que outros olhos vissem aquela cena, porque há cenas que não são para os olhos, são para o coração. A dinâmica do casal para proteger e alimentar os filhotes era digna de ser aprendida pela polícia.

        Pela tarde pude ver o gato da vizinha encima do telhado olhando para a pilastra. Confesso que tive vontade de atirar-lhe uma pedra, mas depois pensei que tendo os filhotes os pais que tinham, não seria necessário que eu interviesse.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O desafio

        Cheguei em casa decidida a encontrar o meu caderno vermelho. Sim eu queria reler a minha adolescência. O caderno vermelho era onde eu registrava meus sentimentos. Coisas de 20, 25 anos atrás. Procurei, procurei e quando já começava a angustiar-me o encontrei. Sentei com as pernas dobradas na cama e folheei as dezenas de páginas amarelas. Não tive paciência para ler tudo, algumas coisas ali já não me diziam respeito. Mas encontrei algo que me fez rir e pensar em por que eu não escrevera mais assim. É a descrição de uma destes dias em que temos prova e deixamos para estudar de última hora...
DESAFIO
"Hoje tenho prova de química, vou sair mais cedo e estudar no ônibus, afinal são quarenta minutos de viagem. Cá estou. O ônibus parou. Calma, calma todos vão subir. Ai! não empurra, será que me sobrará um lugar no cantinho? Não senta aí moça, pensei comigo. Ufa! Sentei.
Como sempre, rotineiramente, o motorista faz seu caminho. Pá! Xii...Rom-Rom... . Passageiros: ficaremos por aqui, o ônibus quebrou. Eu mal saí de minha vila. Nem sequer peguei o caderno; e agora? Vou chegar atrasada e o pior: não estudei.
Lá vem o outro ônibus lotado. Pára e logo o aglomerado se forma. Todos querendo subir ao mesmo tempo. Pareço uma barata tonta, mas e a prova? Eu tinha que confiar no estudo de última hora, que merda. Ai, pera aí! Como está apertado! Fiquei com dó das sardinhas, como aguentam ficar tão apertadas? Ai meu pé! Eu não abria a boca, somente pensava com uma vontade louca de gritar e sair correndo. Um homem gordo se esfregava em mim. Por que você não se encosta em sua santa mãe? Sai, desencosta! Não aperta.
Um banco é desocupado. Empurrões, atropelos, sentaram... E eu aqui em pé, me apertando nesses ferros do banco. Uma curva, não sei onde seguro. Vai tombar, vou morrer, ai... Passou.
Triimmm....
Alguém quer descer, mas como? A porta de entrada está bloqueada. Fecha a porta de trás. Desesperadamente grita a cobradora.
Gentilmente o rapaz segura a minha bolsa. Que alívio! Ela estava tão pesada. Mas que horas são? Tenho prova de química, a matéria é pouca, mas não estudei. Como sou burra!!! Homem, pelo amor de Deus saia de cima de mim. Quero respirar. Um macaco! Não! Espere! Não quero respirar um macaco, mas eu vi um macaco. Na casa a minha frente em plena avenida Dom Pedro I. Ah, prova de química...
Droga! Já são seis horas e cinquenta minutos no relógio da padaria e ainda estou a vinte minutos de meu objetivo.
O ônibus está esvaziando aos poucos, mas não me livro do aperto. É nessas horas que eu queria ter um carro; um excort ou um santana... um fusquinha serviria. Dona Maria deixa eu passar, por favor? Vou descer no próximo. Motorista espera um pouco. Seu idiota olha onde pisa. Sai da frente que eu vou passar. Cobradora cadê o meu troco? Quer que eu segure sua bolsa? Não obrigada, já vou descer. Vai direto motorista, já está cheio. Sai da porta moleque...
Vou enlouquecer. Cheguei. Que alívio; nem sequer olhei para trás. Peguei o caderno enquanto subia a escada. Puxa vida. Eu deveria ter estudado. A porta está fechada, será que o professor já entrou? Lentamente abri a porta. Caramba! Que bom! Ele ainda não veio. Sentei-me logo e já estava diante de meu desafio".
                                                                                                                                 (07/11/1989) 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A concha

        Existe algumas delícias inomináveis que o mundo moderno e as obrigações da vida adulta não nos permite mais. Uma delas é passar a tarde sentada ao ar livre conversando e ouvindo uma deliciosa pessoa - pois algumas pessoas são deliciosas de ouvir - e revivendo fases da própria vida.
        Estava eu ouvindo as peripécias turísticas de minha querida amiga e suas vivências ora divertidas, ora dramáticas, ora profundas e espiritualizadas, um cardápio completo, quando me dei conta de que havia sido inclusa na viagem mesmo sem ter ido. Compartilhou-me uma belíssima experiência à beira-mar com a concha que havia recolhido da areia a meu pedido. Particularmente gosto de trazer conchas das praias e pedrinhas das cachoeiras, mesmo sabendo que não é uma atitude ecologicamente correta. Não sei exatamente explicar o por quê deste gosto, mas creio que minha amiga tenha me dado uma dica.
        É como se a concha ou a pedra contivesse o momento mágico vivido ali, como se ao trazê-la e colocá-la em minha escrivaninha eu o mantivesse para sempre comigo e pudesse revivê-lo a qualquer momento. Minha amiga estava com a concha a algum tempo até que decidira sentar para admirar o mar e, por força daqueles pensamentos que não podemos explicar já que são frutos do espírito, viu-se impulsionada a não trazer-me-a. Contou-me quase como quem recita um poema que se a trouxesse aquele momento seria somente meu, por isto, no desejo de imortalizá-lo, lançou a concha ao mar.
        Estes gestos são delicadezas divinas que nos pegam de surpresa e enchem nosso coração de alegria. Não tive palavras para dizer-lhe o quanto me era importante e significativo escutar tal declaração de amizade. Não sei se ela sabe que o mar sempre foi um lugar de profunda nostalgia para mim em minha adolescência. Nas raras vezes que nossa família viajava à praia, meu maior prazer era andar pela areia e conversar com o mar. O mar trouxe os meus avós para este país. O mar é para mim a metáfora mais completa de Deus. Há um sentimento de pertença que me invade quando estou diante de sua imensidão. Uma saudade de não sei o quê. Graças a minha queridíssima amiga, de agora em diante eu saberei.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Cinco anos

        Dia 17 deste mês eu conversava ao telefone com uma amiga muito querida que não vejo há alguns meses e ela me pedia alguns conselhos amorosos. Isto me angustia deveras, já que no quesito relacionamentos fui dramaticamente reprovada. Até os primeiros vinte minutos da conversa tudo fluía bem, quando de repente, olhando para o canto da tela do computador, me dei conta de que completava cinco anos de divorciada. Por uns instantes perdi o fio da conversa.
        Após algumas elucubrações minha amiga decidiu que eu era melhor conselheira que sua psicóloga, agradeceu-me e desligou toda feliz, ficando eu com as minhas mazelas dançando ao redor de mim. Sentada em minha poltrona giratória senti também o chão girar. Cinco anos se passaram e onde eu estive todo este tempo?
        Recordei-me do pavor que vivi na época, da ansiedade, da angústia, do desespero que me levava a olhar-me no espelho e não enxergar nada além de uma sombra. Eu não tinha identidade. Pela segunda vez eu não tinha identidade. Já havia passado por aquilo na juventude, mas agora era diferente. Era o fracasso acumulado, o segundo título de ex. Primeiro era ex-freira agora ex-esposa. Significava que eu fora e não era mais. Eu era o não-ser.
        Nesta época tornei minha casa meu casulo. Morando sozinha numa casa antiga e destruída iniciei meu processo de reconstrução. Era preciso estar só para encontrar-me já que me havia diluído no marido e na vida exemplar de mulher casada e fiel. Sozinha eu seria obrigada a conviver comigo mesma, me enxergar, me ouvir. E quantas foram as vezes que me ouvi chorar até dormir de cansaço. Quantas vezes me ouvi gritar sobre qual havia sido o meu erro. Quantas vezes me ouvi rir desesperadamente como se tivesse enlouquecido.
        Tudo ao meu redor adquiriu sentido simbólico. A casa e suas infiltrações, rachaduras, bolores, móveis velhos, quintal cheio de mato e nenhuma flor. Passei a reformar a casa ao mesmo tempo que reformava meu psiquismo. Iniciei o cultivo de um jardim para reeducar meus sentimentos. Aos poucos uma nova realidade foi tomando forma, e não faltaram desafios, os quais dariam outra história. Mas criei o hábito de imaginar como as coisas seriam depois de prontas. Coisas comuns, como poder comer num restaurante todos os dias, ter um carro, amar alguém.
        Lutei contra a maldita voz que com o dedo em riste me acusada de ter perdido tempo na vida, e me neguei a pensar que já não pudesse mais realizar meus sonhos. Eu queria meu espírito de volta, aquele da adolescência que me havia levado a buscar a felicidade. Eu queria sentir novamente, mas tinha medo e não sabia como.
        Depois das flores vieram os cachorros. Relutei ao máximo, não queria amar novamente. Sentia-me incapaz de amar. E mesmo com o Lui - meu primeiro cachorro - em casa, eu me sentia estranha. "Por que o trouxera" - me perguntei várias vezes. Hoje eu o amo tanto que chego a sentir dor no peito quando o vejo. Temos mais do que um vínculo de dona e cão, temos um pacto de vida. Nós nos salvamos do abandono.
        Mas os seres humanos ainda estavam longe do meu coração. Mesmo trabalhando diretamente com centenas deles, eu não os queria próximos ao meus sentimentos. Introduzi-me num grupo social interessante, o qual me respeitava e eu tinha com quem sair algumas vezes no ano. Porém, o afeto estava trancado e havia uma terrível formalidade em minhas atitudes. Apesar de desejar o contrário.
        Consegui manter firme minha barreira até que uma criaturinha morena, a mais frágil que se possa imaginar, minou as minhas defesas. Vi-me absurdamente envolta nos confusos sentimentos adolescentes que não me dei o direito de expressar na hora adequada. Quando menos percebi ela já estava instalada em meio aos meus conflitos, sempre mirando-me com ternura e uma intensidade que chega a doer. Ela é a minha menina interior. É como se Deus, por misericórdia de mim, tivesse feito sua alma com alguns elementos curativos da minha para que em algum momento nos encontrássemos.
        Toda a sua ternura derramada em mim como um bálsamo, aos poucos me tem acalmado e, por causa desta calma outros passaram a se sentir bem em minha companhia. E o amor romance que eu havia descartado e temia aconteceu. Porque Deus também pensou neste detalhe e colocou em minha vida alguém capaz de me ajudar a curar as feridas da mulher.
        Estive aí estes cinco anos. Nessa reconstrução e reforma constantes. Ora aparece uma rachadura aqui e concerto, ora aparece ali e remendo. A casa continua antiga, mas adquiriu um espírito jovem e acolhedor.
        Sinto-me mais feliz, porém mais frágil do que antes. Choro por saber que nos separaremos fisicamente em breve e não saber o que fazer com esta nova sensação. Assim como os adolescentes que se formam e se separam dos amigos, sinto-me eu. Uma adolescente prestes a se formar, mas a diferença é que a minha formatura será a formatura do afeto. Quem sabe no próximo ano eu consiga entrar na faculdade e me tornar uma especialista. Tive, sem dúvidas, uma excelente professora que será sempre a minha referência.  

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Sagrado

        Algumas pessoas e situações movem o nosso espírito de um maneira absurda, elas nos lêem de maneira positiva ou negativa. Prefiro tais termos mais exotéricos do que bem e mal. Cansei destes termos já a algum tempo. Bem e mal são instâncias das quais não posso compreender e teria que apenas aceitar, o que nesta fase de minha vida, abro mão completamente.
        Os conceitos de bem e mal estão diretamente ligados à religião e como diz Rubem Alves, se você quiser conhecer a alma de uma pessoa converse com ela sobre religião. O ser humano descreve Deus à sua imagem e semelhança. Uma pessoa dura e vingativa terá o conceito de que Deus castiga, por exemplo. Fico feliz com tal pensamento, pois assim posso conhecer melhor a minha alma.
        Religião não é algo que eu queira mais para a minha vida. Gosto de ser espiritualizada e de certa forma tenho meus rituais próprios. Não rezo orações elaboradas na Idade Média, mas uso as minhas palavras para conversar com o sagrado. Também não gosto muito da palavra Deus.
        Não vou à Igreja porque o sagrado costuma vir até mim em meu jardim. Ele me maravilha no canto do pássaro, nas cores das borboletas, no voo do beija-flor, no toque-toque do pica-pau amarelo, na meiguice do meu cachorro. No sol que aquece o meu corpo, na terra que acaricia meus pés descalços, no suor do meu corpo que libera adrenalina e me dá prazer.
        Gosto de ser mística, mas não ingênua. Gosto de acreditar que tudo está interligado e tudo o que há na natureza está em mim e em mim se manifesta de forma que irradie aos outros. As coincidências servem para que eu compreenda o que estou irradiando naquele momento. Explico-me. Ganhei em menos de uma semana dois presentes ao mesmo tempo diferentes e iguais. Um porta retrato laranja com a foto de um grupo de pessoas muito queridas por mim, onde estamos todos com o que se costuma chamar: sorriso de orelha a orelha. É a nossa alegria imortalizada na imagem. E ganhei também um belíssimo colar laranja. É a minha imagem sendo melhorada. Mas por que laranja?
        Apesar de conhecer um pouco de cromoterapia, assim como com as religiões, tenho minhas ressalvas. Mas, não deixei de pesquisar, nestes sites populares mesmo. Para meu espanto a dinâmica positiva desta cor está vinculada à vontade e poder e a negativa à fadiga e cansaço. Acho que realmente algumas pessoas têm o dom de enxergar a minha alma. E para mim isto também é a manifestação do sagrado.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O talento

        Quando cultivamos um jardim pensamos que de alguma forma nós orientamos a natureza. Plantamos nos espaços que desejamos, organizamos as flores pelas cores que mais gostamos e isto nos dá a sensação de poder, de controle. Pura ilusão, pois nem sempre as plantas se sentem felizes nos lugares em que as plantamos e demoram para se desenvolver ou morrem. Outras que nem sabíamos que estavam ali de repente florescem e alegram os nossos olhos. É uma aventura sentimental um jardim.
        O que as pessoas não sabem é que só cultiva um jardim quem tem um demônio dentro de si. Não é o demônio das igrejas, é o mesmo demônio que atormentava Sócrates. Aquele que o questionava o tempo todo, que o obrigava a pensar, a refletir, a aprofundar questões incômodas. Pois é, meu demônio cultucou-me nesta semana obrigando-me a pensar no conceito de talento.
        Palavra tão usual e até banal. "Você tem talento para tal coisa." "É preciso ter talento para fazer isto". "Aquela pessoa não tem talento algum". E assim seguem os comentários que como ondas de rádio permanecem no espaço psicológico de alguns de nós. Mas o que é talento?
        O critério popular diz que talento é um dom natural. Defendem que a pessoa nasce com ele. Pode ser um talento para música, teatro, pintura etc. Chega às raias do mitológico. Parece algo pronto e acabado que define a vida e o sucesso das pessoas. Mas sejamos um pouco realistas. Será que não estão confusos? Será que na realidade, por questões biológicas, educacionais e sociológicas o que temos são habilidades?
        Rotular uma pessoa de talentosa como algo que já veio pronto e anexo à sua alma é muito perigoso, pois se em algum momento ela falhar, significará que seu talento não fora real? Desaparecera? E quais são as certezas sobre o talento de cada pessoa? Se uma criança brinca com carrinhos significa que ela tem talento para ser corredora de fórmula 1?
        Nossas habilidades são possibilidades, assim como as sementes, assim como os brotos. São oportunidades de nos tornarmos competentes em algo. Uma vez, na disciplina de Literatura Brasileira estudamos um poema por várias aulas, até que um aluno se cansou e disse para a professora. Ela calmamente pediu para que o aluno tivesse paciência pois o poeta havia levado dez anos para compor aquele poema. Fiquei pasma e então compreendi que as grandes obras são dez por cento inspiração e noventa por cento transpiração.
        Tudo é uma convergência de fatores para a planta nascer: o tipo de solo, a época do ano, a quantidade de água, de adubo, de poda e a qualidade da semente, além das formigas que poderão devorá-la ainda pequenas. Assim somos nós réles mortais. Temos as nossas habilidades, as quais serão desenvolvidas ou não, dependendo dos mais diversos fatores: educacional, sociológico, econômico, religioso, emocional e etc.
        Para cultivar o jardim é preciso ter o coração aberto para todas as possibilidades. É preciso releitura constante e muita observação, pois a qualquer momento será preciso mudar alguma planta de lugar para que ela possa desenvolver-se, por mais que eu a desejasse naquele lugar.

domingo, 7 de outubro de 2012

A piscada

        Qual é o valor de uma piscada? Absolutamente nada - diriam uns. A piscada é um ato involuntário necessário à lubrificação dos olhos - diriam outros. Pois eu digo e defendo que a piscada é o maior dos gestos de cumplicidade.
        Estamos numa balada com centenas de pessoas e de repente paramos no olhar de alguém e este alguém nos pisca. Qual a sensação? Com certeza é a de exclusividade. Receber uma piscada de alguém no meio da multidão. Significa que alguém nos viu e gostou do que viu.
        Numa discussão sem fim. De repente queremos nos meter para ajudar um amigo, mas ele nos pisca. Quer dizer-nos que não vale a pena nosso esforço, que deixemos, que não nos metamos, pois no fundo ele nem está levando a sério aquela situação.
        Quando um amigo conta uma mentira para outro na nossa frente e nos pisca. É um pedido de socorro, de "não me desminta, por favor". Assim como numa bronca. Se alguém nos dá uma bronca e nos pisca, sabemos que aquela bronca é uma mentirinha, é um faz de conta, tem outro objetivo.
        É por isto que a piscada se torna muito mais do que um movimento involuntário das pálpebras. Não neguemos sua involuntariedade e necessidade fisiológica de lubrificação dos olhos. Pois com os olhos bem lubrificados, podemos ver uma piscada voluntária em meio à multidão. Ah...se isso acontece, a cumplicidade está selada, não se pode mais voltar atrás. Não há testemunhas, só o teu coração e o de quem te piscou, e isto já basta para te condenar àquela deliciosa cumplicidade amiga.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O livro

        Ouvir dizer que as pessoas mais intelectualizadas fazem menos sexo do que as outras. Confesso que por um tempo acreditei em tal teoria, porém, isto não é verdade. As pessoas intelectualizadas fazem muito mais sexo do que as outras. A questão está no conceito de sexo. Se sexo for visto apenas como algo genitalizado, então poderá ser verdadeira esta afirmação. Mas se sexo for um ato de conquista, enlace afetivo, amor e prazer...então, com certeza os intelectualizados praticam mais sexo.
        A leitura nada mais é do que uma relação de amor. Entramos numa livraria como se entrássemos numa balada. Ali encontramos livros de todos os tipos, tamanhos, assuntos e preços. Passeamos pelas estantes lançando olhares intensos, desejosos e por vezes furtivos. Uma capa nos chama a atenção, uma ilustração, um título ou até mesmo um valor. É a paquera.
        Depois tomamos coragem e nos aproximamos. Sentimos seu cheiro. Como é prazeroso o cheiro de livro novo. Odor faz parte da conquista, há perfumes especializados nisto. Com um pouco de receio o tocamos, pegamos na mão, acariciamos a capa, ainda mais de for em relevo. São as primeiras carícias.
        Se até aquele momento foi do nosso agrado, então abrimos o livro, com cuidado para não danificá-lo, pois ainda não é nosso. Atentamente lemos sua orelha. Sim a orelha, uma das nossas zonas mais eróticas. Ali o conquistador testa as reações do conquistado. No livro também. As informações básicas estão escritas ali.
        Havendo reciprocidade - o livro também nos escolhe - o levamos para casa, para a nossa intimidade. Nos aventuramos a introduzir uma conversa. Lemos a introdução e de maneira muito natural, passamos à história. Ali rimos, choramos, gememos de dor e de prazer. Literalmente na cama, porque ler na cama é mais prazeroso. Fica tarde, sabemos que no dia seguinte teremos trabalho, mas desejamos ir até o fim, até o ápice do prazer, saber como a história acaba. Nem sempre terminamos no clímax que esperávamos ou desejávamos, mas mesmo assim dizemos que valeu a pena, que foi bom.
        Quem não passa por este processo violenta e estupra a leitura. Então ela não dá prazer. É apenas uma conveniência, uma obrigação, um hábito obrigatório para uma prova ou teste, portanto, não será sexo e muito menos amor.