Quem sou eu

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Gosto de compartilhar pensamentos e vivências, porque ao retirá-los de mim posso enxergá-los melhor.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

As paredes

        Não é a primeira vez que pinto um cômodo. Já pintei casas inteiras e nunca demorei tanto. Pintar meu quarto tem sido mais do que passar tinta nas paredes, tem sido um processo interior. A terceira parede está pintada somente pela metade, pois preciso que esta parte seque para nela colocar os móveis e pintar o resto. Se fosse em outras épocas, talvez tivesse colocado todos os móveis no centro e pintado ao redor. Mas desta vez meu tempo é outro.
 
        Estou mais lenta, não tenho vontade de atitudes exuberantes ou radicais. Quero mover o menos possível, não quero mais me machucar com atitudes bruscas. Além de pintar tenho separado aquilo que preciso e o que não preciso mais. Desfazer-me dos supérfluos ou do pouco útil, fazer uma limpeza nas gavetas e portas.
 
        Assim, aos poucos, penso em minha vida, refaço planos e construo sonhos. Reorganizo a vida, os pensamentos e os sentimentos, talvez eu nem mude muito, mas não quero ser sempre a mesma. Algumas situações ainda me amedrontam, mas o medo vai passar, a insegurança se diluirá e o coração aflito encontrará novamente a paz, pois as paredes um dia terminam.
 

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Minha menina

        Não pensei que eu ficaria tão deslocada sem a tua presença. Não é fácil escrever sobre isto, minha menina, é assim que penso em você, minha menina. Perdoe-me o possessivo, sei que não é meu por direito, mas o é por apropriação devida, devida a nosso laço construido.
 
        Estou desconcertadamente estranha, sentindo falta da nossa rotina. Dos abraços de bom dia, dos cúmplices olhares, das risadas, da companhia na hora do almoço. Sinto falta até do teu cheirinho de bebê, do teu jeito de andar saltitando, das tuas gozações. Estou estranhamente desconcertada.
 
        Você me ensinou a criar vínculos, a acreditar que posso ser importante para alguém, apenas pelo que sou. E agora eu não sei o que fazer. Tudo está diferente, tudo está em ordem, certinho demais, frio demais.
 
        Sem que eu me dê conta subo a rampa olhando para a tua sala, mas você não está lá. Vou até a porta na esperança de ver um sorriso, mas ele não vem. Novos rostos, assustados, amedrontados que me tratam como se eu fosse a polícia. Tenho medo de parar de rir, de não ter mais brilho nos olhos. Tenho medo de voltar ao casulo.
 
        Quanto egoísmo o meu, sabendo que para você este tempo de espera é aflitivo, é angustiante, eu queria poder fazer algo, mas não sei o que fazer, a não ser torcer para que tua alegria não seja abatida e dizer que estou aqui. Que você encontre sentido nos teus dias e não perca a certeza do quanto você é boa em tudo o que faz.
 
        Estou desconcertada, pois nunca assumi para uma pessoa o quanto ela me faz falta. Aprendi a camuflar meus sentimentos para não sofrer ainda mais. E desta vez me pego como uma criança assustada, com as emoções à flor da pele, debulhando neste espaço o que não tenho como compartilhar.  Obrigada por me ensinar a entregar meu coração, para que ele seja livre e não se entregue às amarras do medo e da insegurança. Vai passar...e logo deixaremos nossas estranhezas nos mostrar novos caminhos.
 
 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Há dias

        Há dias em que tudo nos faz falta, mas pior é o dia em que nos falta afeto. Nem dinheiro, nem carro, nem casa, nem roupa, nem jóias são suficientes para sanar a falta de afeto.
 
        Resisto insistentemente, porque se há de sobreviver às suas próprias mazelas, mas há dias em que tudo fica mais pesado. Há dias em que eu apenas queria um abraço apertado, deitar no colo e ter a cabeça acariciada. Há dias em que eu não queria ser mulher, mas apenas uma menina no colo do pai, ou da mãe, que nunca tive. Não me lembro do afeto positivo de meu pai. Somente do afeto sufocante  e pesado de minha mãe.
 
        É possível sobreviver, desde que não se arrisque a amar novamente e sem que se movam as águas paradas. Águas paradas são águas turvas que quando remexidas exalam odores desagradáveis e nem sempre há quem deseje te ajudar a filtrá-las.
 
        Há dias em que eu só queria um ombro ou dormir de conchinha. Há dias em que o choro trava na garganta sem que eu possa fazer algo. Há dias em que não é possível dizer que está tudo bem sem que a voz engasgue. Há dias em que a flor da emoção aflora, e eu penso que são os hormônios e que amanhã vai passar.
 
 
 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Perguntas

        Hoje fui visitar minha possível futura residência. Gostei do ambiente, um apartamento com três quartos pequenos, sala de estar, uma cozinha razoável para os padrões atuais e duas varandinhas, todas as janelas de frente para a rua. Pensei em minha velhice, onde estarei daqui a uns anos?
 
        Estes pensamentos me atormentam, pois mesmo após ter vivido mais da metade de minha vida útil, ainda não tenho as certezas que eu gostaria de ter. Não sei se fiz as escolhas certas, se escolhi o caminho adequado, se não me arrependerei das decisões que tomei. Será que todas as pessoas sentem o mesmo que eu?

        Como faço para ter mais certezas? Como faço para sentir que minha vida tem sentido e que os dias não são vazios por serem repetitivos? Tenho a sensação de andar, andar e não sair do lugar. Queria conseguir enxergar o que fui e o que sou. Algumas fotografias revelam o envelhecer de meu rosto.

        O que eu ainda desejo? O que me move? Quais são os meus ideais? O que ainda quero viver? Tantas perguntas para poucas e vagas respostas. Passam os anos e este incômodo não passa, serei eu uma premiada do destino ou será esta uma angústia comum a todos os seres mortais?

        Estou cansada de perguntar...quero dormir e acordar com o coração cheio de esperança e vontade, pelo menos para viver mais um dia.


 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

As paredes

        A luz me incomodou um pouco. "Vai dormir na cama", escutei. "Não", respondi balbuciando. Não era possível, minha cama estava repleta de objetos. Meu quarto estava passando por um processo de transformação. Por sete anos suas paredes permaneceram verdes. Eu precisava mudá-las, meu quarto ainda era o único lugar não alterado desde meu divórcio.
 
        "O quarto é o lugar do afeto", me disse uma vez minha terapeuta. Eu havia reformado todos os cômodos, até o poço, mas meu quarto continuava da mesma maneira. Há meses eu pensava no porquê desta negligência, já que o afeto era o que eu mais precisava mudar. A rotina me havia engolido numa espiral de compromissos de trabalho e meu quarto se transformara num depósito, depósito daquilo que eu deixava para depois. As paredes começaram a reclamar reforma, a cortina já não as ocultava mais.
 
        Chegou o dia, pensei. E foi justamente após o baile. Levantei-me disposta a enfrentar esta mudança, comecei pela área de trabalho e pela parede com buracos, logo abaixo da janela. Descasquei-a sem medo, retirando toda a sujeira e areia solta. Preparei uma massa e com uma colher de pedreiro cobri os buracos. As paredes de meu quarto não são tratadas com massa fina, são rústicas e para os padrões atuais de construção são feias. Mas elas têm história, mais história do que qualquer parede nova.
 
        Não é possível pintá-las com rolo, é preciso usar um pincel, o que demanda mais trabalho e dedicação. Escolhi a cor laranja, eu havia ganhado dois presentes com esta cor, pensei ser a cor do meu momento de vida. Primeiro lixei-as, passei uma demão de branco e depois duas de laranja. Ficou agradável e alegre.
 
        Faltam duas paredes e é preciso mover alguns móveis pesados para pintá-las, por isto é possível ver no mesmo ambiente o novo e o velho. É possível apreciar a transformação. Creio que assim somos nós quando desejamos mudar. É pouco a pouco, movendo tudo o que temos e construimos em nossa alma, reorganizando, atribuindo novos sentidos, reestruturando. Eu não acredito em mudanças radicais, em pessoas que se dizem outra da noite para o dia. A mudança radical só é possível para quem está vazio e não tem nada para mover.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

O baile

        Coloquei meus sapatos debaixo da mesa e voltei para a pista, a mesma pista que eu pisara entre meus treze e dezessete anos. A mesma pista onde eu dançara rock in roll, lambada, rock nacional e algumas poucas lentas, nas raras vezes em que me tiraram para dançar. Uma dança lenta significava um beijo. Poucos eram os garotos que nos tiravam para dançar e não nos beijavam.
 
        Voltei para a pista. Foram praticamente cinco horas dançando, rindo, desfrutando de sorrisos jovens e esperançosos. Era o meu baile de formatura, o baile dos bailes que não tive. A vida - após tanta história - resolveu me dar de presente um momento mágico. Talvez, se eu houvesse tido uma formatura, ela teria algum fato ou nota triste que a marcasse. A ausência de algum ente querido ou mesmo a presença de algum ente não querido. A insatisfação de algum convidado ou mesmo alguma inimizade na turma.
 
        Sim, era o meu baile, a minha formatura. Agora sim, posso dizer que sou formada, que sou uma professora. Meu curso durou cinco anos e nos dois últimos fiz estágio com uma turma maravilhosa que me ensinou a enxergar o lugar do afeto na relação professor-aluno, que me mostrou a importância do importar-se. Tive excelentes professoras, claro que uma delas foi a mais exigente, a mais presente e que me cobrava mais. Essa me fez virar do avesso, me obrigou a praticar as teorias que conhecia e me acompanhou de perto, literalmente.
 
        Dancei como uma adolescente que se forma no ensino médio. Passeei pelo salão buscando a todos, eu queria abraçar a todos, dançar com todos, comemorar, eu estava me formando. Girei em roda como uma criança e suei de cansaço, de bom cansaço. Bebi três cervejas, o que ultrapassa meu limite e provei de todos os petiscos. Eu tinha direito, era minha formatura, tudo preparado carinhosamente para mim.
 
        Que emoção, minha professora de afetologia estava lá, linda como sempre. Logo no início veio até minha mesa, me cumprimentou e depois por diversas vezes dançou ao meu lado, me fazendo sentir parte de sua vida. Nada para reclamar, nenhuma lembrança negativa ou chateação, se isto não é um presente de Deus então foi um sonho.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Conceição

        Sai da terapia um pouco mais tarde, muitos foram os assuntos, todos girando no mesmo ponto. Particularmente não me sentia bem, o excesso de calor baixou minha pressão e o divã com as almofadas me convidavam para me deitar e dormir.
 
        Deixei o consultório decidida a chegar em casa o mais rápido possível, desejando que o trânsito não me fosse tão cruel. Atravessei a rua, abri e carro e entrei. Uma senhora fez sinal para que eu abrisse o vidro, exitei mas abri. "Posso te pedir uma coisa?" - perguntou quase chorando. Logo imaginei que quisesse dinheiro e já me preparava para dizer um não bem redondo - pois mesmo que eu tenha não dou dinheiro na rua - quando resolvi perguntar: "O que a senhora deseja? "Eu sai de casa cedo, estou andando pelos hospitais para conseguir pomada para as minhas pernas e ninguém tem. Eu tô com fome e passei mal, não consigo mais andar". "A senhora quer uma carona, é isso?" Balaçou a cabeça afirmativamente.
 
        Olhei ao redor para ver se alguém se escondia e só estivesse esperando que eu lhe abrisse a porta para me roubar, não percebi ninguém. Contudo, minha percepção para tais malícias é quase nula. Arrisquei e ela abriu a porta. Imediatamente vi suas pernas cheias de varizes, como as pernas de minha avó. Com dificuldades ela entrou e um cheiro forte de urina invadiu meu carro. "Onde a senhora mora?". "Na rua Peri, mas eu quero ir no hospital porque eu estou passando mal". "A senhora sabe me explicar onde fica o hospital?". "Sei, fica na Goiás". Recordei-me que era o mesmo hospital para onde me levaram no dia em que passei mal no trabalho.
 
        Sem muita conversa segui. "Como você se chama?", "Luciana. E a senhora?", "Conceição". Sabe Lú, eu sofro muito com as minhas pernas, doem demais". Fiquei espantada com o grau de intimidade com que me tratou com apenas cinco minutos de convivência. "Imagino, minha avó também tem as pernas assim". "E ela diz que dói?", "Diz sim, diz que dói muito". "Eu não posso operar, os médicos dizem que não sabem o que fazer", "Por que a senhora não pode operar?", "Por causa do coração, Lú. Eu tenho problema de coração e nas costas, olha o meu ombro". Desviei o olhar do volante em direção ao seu ombro, mas não vi nada diferente.
 
        Dois, três faróis e um pensamento: Será que fiz certo em colocar uma pessoa estranha em meu carro?, "Lú, você é muito bonita.", "Obrigada". "Vira a próxima à direita". "Pronto, chegamos." Ela saiu do carro com muita dificuldade e antes de fechar a porta me disse: "Posso te pedir mais uma coisa?", "Depende do que for", "Eu não tenho nada para cozinhar em casa, você poderia me ajudar com alguma coisa?", "Eu não tenho dinheiro, gastei tudo com o cartão do estacionamento". Sua expressão foi de desapontamento. "A senhora vai encontrar uma pessoa boa que lhe ajude." Bateu a porta e se foi.
 

domingo, 17 de fevereiro de 2013

O artesanato

        Não é nada bonito dizer que se tratou mal a própria mãe. Somos educados para respeitá-la acima de tudo e amá-la mais que a qualquer pessoa. Nem sempre é assim, e as pessoas não nos contam isto. Descobrimos sozinhos, nos conflitos diários e vivemos intensos dramas de consciência.
 
        Narrar minhas crises filiais não vem ao caso agora, os muitos anos de terapia me ajudam a conviver mais ou menos bem com elas. O que desejo é compartilhar uma das muitas descobertas que faço após terríveis e dolorosas discusões, onde a palavra fere mais do que ferro quente.
 
        Tudo estava como sempre, mas uma frase me arrebatou como a tempos não acontecia: "Nossa, como está sujo detrás desta geladeira". Banal, muito banal. Não, para mim não foi banal. Foi como uma condenação pela minha incapacidade de ser boa em tudo: trabalhar, cuidar da casa, dos cachorros, do jardim, do namorado etc, etc, etc. Ela não limparia para mim, eu sabia; apenas não comentar, ajudaria. Meu estômago doeu na hora e uma avalanche de palavras saiu da minha boca como facas lançadas ao ar. Ela retrucou com palavras que não costumava dizer. Foi vulgar e como sempre fizera falou-me como se eu fosse sua amiga. "Não somos amigas, você não entende? Você é minha mãe e o que você fala tem muito peso pra mim, quando você vai entender isso?" Mães não devem ser amigas de suas filhas. A mãe que age como amiga perde o filho e o deixa à mercê de uma busca desesperada por uma mãe, se deixando seduzir por pessoas de má fé, que observam sua carência.
 
        "Eu não gosto de vir aqui", disse-me nervosa. "Eu também não gosto de ir na tua casa", respondi sinceramente. "Eu te mostro meus artesanatos e você nem os comenta", afirmou. "Eu não gosto dos teus artesanatos, você invade a minha casa e o meu espaço com eles, eu nem posso escolher a toalha de mesa que quero, tudo aqui você fez e impôs. Além do mais eu não entendo de artesanato, não sei o que devo elogiar". Outros temas mais profundos fluiram e tentei consertar a situação, me recordei das instruções de minha terapeuta, avaliei sua capacidade de aprofundar aquela discussão e parei.
 
        Ela voltou para a máquina de costura e eu comecei a passar mal. Um mal estar horrível, era como se alguém houvesse sugado minhas energias, meu corpo pedia para deitar e acordar dali a três dias. Lutei contra este sentimento e foi quando algo ficou claro em minha mente. "Eu não quero discutir mais", disse o mais calmamente possível. "Mas preciso te falar uma coisa. Inconscientemente eu faço com você exatamete o que você sempre fez comigo. Se lembra de quando eu te pedia para você olhar meus cadernos e se interessar pelas coisas que eu estudava? Então, você nunca me elogiou, nunca se interessou por olhar. Hoje eu entendo que você não olhava por vergonha de admitir que não sabia, não entendia das coisas que eu estudava. O mesmo faço eu com teus artesanatos, mas nunca duvidei de tua capacidade, só não entendo das tuas coisas".
 
        Passei o fim de semana todo ao seu lado, cortando panos e costurando. Aprendi algo a mais, mas não posso dizer o mesmo dela.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O retorno

        A noite chegou e eu precisava dormir, minha rotina voltaria ao normal no dia seguinte, mas o sono teimava em ocultar-se em terras distantes. Ocorreu-me que eu não teria mais o teu bom dia, nem o teu caloroso abraço e muito menos te veria correr ao meu encontro e pular em meu pescoço como uma criança feliz. Uma pontada de dor se manifestou em meu estômago e percebi que estava ansiosa. Duas, três vezes me levantei durante a noite até que o despertador soou.
 
        Eu não sabia como me sentiria. Não queria sentir tristeza ou qualquer tipo de sentimento egoísta. Cheguei e quase tudo estava igual, menos o clima entre as pessoas que agora parecia mais leve. Agi como num dia qualquer e não tive vontade de observar quem chegava, apenas esperei que o som da obrigação marcasse o momento de começar.
 
        Muitos rostos novos, alguns familiares e deslocados no novo contexto. Olhei para cima, num gesto inconsciente de te buscar entre eles. Não senti tristeza e nem pesar, eu sabia que ali não era mais o teu lugar, que agora você pertence a outras terras e mares, que o teu barco navega em direção às águas profundas.
 
        O tempo passou sem que eu percebesse e a rotina voltou às minhas veias como um vício retomado. Senti que por você não estar mais, ali não continuaria a ser o centro de minha motivação e eu poderia me dedicar às práticas laboriosas que também me dão prazer e alegria.
 
        Já me preparava para a refeição do meio-dia quando o telefone tocou. Não me ocorreu que você estivesse ali, como de costume, à minha espera. Pensei que tão somente quisesse saber como fora meu dia sem tua presença. Uma alegria serena tocou meu coração e ao ver-te tive a certeza de que ali não era mais o teu lugar. Você cresceu e estou feliz por isso. Diante de meus olhos, dia a dia, você cresceu. Terei que exercitar ver-te algumas vezes, pois você nem sempre estará com teu barco ancorado em águas rasas. Usarei binóculos para te acompanhar e estarei à tua espera quando de mim precisar.
 
        Vi em teus olhos um profundo desejo que ficar mais, de permanecer ao meu lado, de reviver, pois a incerteza dos fatos te amedronta. Vi em teus olhos um pedido de colo, de abraço, de aconchego. Mas, sabemos que nosso elo vai além, se completa no espírito e mesmo que eu deseje ardentemente, nem sempre poderei dar-te este consolo. Isto me causa um profundo pesar, mas é necessário, para que você continue crescendo e navegando.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Crenças

        Eu tinha dezessete anos. Estávamos em quatro amigos e decidimos passear pelo centro da cidade, mais especificamente pela praça ao lado da matriz. Demos umas voltas, compramos sorvetes e nos sentamos para conversar. Uma mulher com aspecto de prostituta se aproximou de mim e pediu um pedaço do meu sorvete, tive um enorme trabalho, mas quebrei um pedaço e coloquei em sua mão.
 
        Logo em seguida um morador de rua se aproximou e pediu um pedaço do meu sorvete e eu dei. Quando eu estava quase acabando, um garoto pedinte se aproximou e pediu um pedaço do meu sorvete, um pouco irritada entreguei com palito e tudo o que me sobrara. Eu estava irritada e confusa, pois meus colegas também chupavam sorvete, mas as três pessoas pediram somente a mim. Eles riam de minha confusão, e este fato contribuiu para as escolhas que fiz para chegar até aqui.
 
        Eu havia saído de uma internação de quase duas semanas por causa de uma pneumonia e chupava aquele sorvete como se fosse a primeira vez. Eu desejei ardentemente aquele sorvete e tive que dividi-lo com três outros desconhecidos. Na época eu buscava um sentido para a minha vida, desejava saber quem eu era e o que seria, por isto, fazia parte de um grupo de jovens da igreja católica. Ali recebia um tipo de orientação vocacional. Interpretei este fato como um chamado de Deus para eu dividir o que tinha de mais precioso com os pobres e necessitados. E o que eu tinha de mais precioso era a minha vida, então sai de casa e fui viver como missionária nos lugares pobres e com pessoas necessitadas.
 
        Hoje percebo que atribui ao sobrenatural o que era natural. Eu estava numa praça onde vários moradores de rua habitavam, e a vontade com que eu chupava o meu sorvete se fez notar, o que lhes despertou desejo. Certamente, pela capacidade de observação que estas pessoas têm, eles souberam que eu seria a mais susceptível, a mais impressionável, portanto, mais fácil de comover-se e doar o sorvete.
 
        Durante muitos anos, usei este fato como prova concreta do chamado de Deus para a vida que eu levava, pois eu tinha medo de dizer que não sabia como Deus chamava as pessoas, e que na verdade, aquela era uma decisão minha, eu queria ser missionária. A fantasia se impunha à razão, já que eu estava num ambiente "sagrado" que mantinha intimidade com o divino.
 
        Este fato estava completamente adormecido e de alguma forma, uma recente discussão o trouxe à tona. Quizá seja para que eu o releia e reafirme, que o ser mais divino se fez ser humano, para que eu não precise negar a minha humanidade e por ela me torne divina. Para que eu não precise buscar no sobrenatural aquilo que está no natural. Mas esta pode ser também uma nova resposta fantasiosa, já que este ser "divino" que se fez homem, fora um homem, natural e comum. É por isto, que vivo em minha solidão religiosa.  Gosto de ouvir as pessoas e suas crenças, apesar de muitas vezes elas pensarem que minha atenção significa também crença. E sofro por não poder compartilhar as minhas sem que o outro pense que quero destruir as suas.  

O filme

        Eu não queria participar da reunião familiar. Liguei para minha irmã e ela se comprometeu estar presente e me representar. Eu não queria entrar na casa de minha avó sem que ela estivesse lá. Entrei no carro e fui direto ao shopping.

        "Professor paga meia-entrada?" - perguntei. "Paga sim, mas o filme é legendado". Ocorreu-me responder: "Pois é, eu sei ler", mas preferi guardar na caixa das respostas não dadas. Comprei o ingresso e como ainda faltavam trinta minutos fui tomar um café e comer cookies de chocolate, dois ingredientes proibidos em minha dieta atual, tudo por causa da gastrite.
 
        Andei um pouco pelos corredores, como uma espécie de remissão por haver violado as prescrições médicas. Voltei e pedi o pacote mega de pipoca com manteiga. Entrei na sala que cheirava a mofo e, como não havia mais ninguém, pude escolher o que me pareceu ser o melhor lugar para ver e ler ao mesmo tempo. Quando ainda passavam propagandas um rapaz entrou e se sentou duas fileiras atrás de mim, e ali permanecemos por três horas. Exibiram um filme de três horas para duas pessoas.
 
        O filme contou a história de seis personagens que se encontram e reecontram no passado, presente e futuro, desejando nos convencer de que tudo está interligado, de que as pessoas estão interligadas eternamente pelos laços do amor. E mesmo sem conseguir interligar todas as partes, pude compreender o motivo de me indicarem tal história. Confesso que me emocionei em algumas partes, desejando que de alguma forma assim fosse. Porque se assim é, então sou afortunada por reencontrar, entre sete bilhões de pessoas habitantes deste planeta, alguém cujo elo mantemos desde outra vida.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A paixão e o amor

        Sua foto divide o porta retrato laranja que ganhei de presente de aniversário de uma querida amiga. Divide porque há outra foto e ambas representam meus dos amores. Dois sim, porque não é possível amar apenas uma pessoa. Nem me venha com discursos moralistas. Amo duas pessoas e não sou imoral. Na verdade amo muitas outras mais e não me considero imoral. Imoral é se apaixonar.

        Apaixonar-se é um dos caminhos para perder a si mesmo e cometer as piores injustiças contra sua autoestima. É colocar-se em situação de risco, seja físico, seja psicológico, seja espiritualmente. Eu sei. Eu já me apaixonei e foram duas vezes. Na primeira vez por uma pessoa e na segunda por um ideal.
 
        Perdemos a referência, ficamos sem chão, ficamos cegos e só vemos a pessoa, só queremos estar com ela, e queremos tê-la para si o tempo todo. Sentimo-no inseguros, pequenos e altamente vulneráveis. Perdemos o brio, o amor próprio, o orgulho e passamos a fazer as coisas mais humilhantes que se possa imaginar. Sofremos muito e a qualidade de nosso relacionamento consigo mesmo e com o outro fica comprometida.
 
        Não quero que ninguém se apaixone por mim, quero que me amem, porque o amor é sereno e gradativo. Começa como uma semente e à medida que cultivamos, cresce lindamente, e aos poucos nos faz sentir-nos seguros. É como observar o crescimento de uma árvore. Aliás, estou lendo um romance grego em espanhol no qual a personagem principal teve uma figueira plantada em sua homenagem ao nascer. Agora, aos dez anos ela brinca nos galhos da figueira. Achei perfeita esta homenagem. Todos deveríamos ter uma árvore desde nosso nascimento.
 
        Aqui em casa tenho uma com 34 anos, plantada por meu pai, logo ao lado da garagem. Todos os dias quando passo por ela, me recordo de meu pai plantando-a, esta árvore é o que me sobrou de mais concreto e afetuoso de sua presença. Eu a amo e como não tive medo de podá-la quando voltei a viver nesta casa, ela me recompensou com galhos mais bonitos e organizados, além de mais altos.
 
        O porta retrato me inspirou a falar de paixão. Enquanto escrevo recebo uma mensagem de boa noite de um de meus amores, o outro eu já havia ganhado, portanto, agora posso me retirar na certeza de que meu desejo fora realizado. Durmo sonhando com que a paixão diminua e o amor cresça nos corações.    
 
 
 
 

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A conversa

        Preciso ser justa com o mês de janeiro e agradecer sua passagem em minha vida, ainda mais a última semana, com acontecimentos importantes e esperados há um bom tempo. Creio que as situações que se organizam em janeiro, definem nossa vida nos outros onze meses e podemos ou não arrastar histórias ou reorganizá-las.
 
        Há tempos esperávamos por esta conversa e trabalhamos nossos ânimos pouco a pouco. Refletimos sobre cada detalhe. Pensamos nas possibilidades de sim e de não, de encontro e desencontro, de aceitação ou negação. Nada mais aflitivo do que tentar imaginar a reação do outro para conosco.
 
        Esta conversa precisava acontecer - e ainda em janeiro - para que o ano fosse realmente novo e as mazelas do ano anterior pudessem repousar um paz. Ansiedade, medo, angústia, dor de estômago, pensamentos acelerados, coração arritmico, tudo isso se passou em nós. Mãos trêmulas e suadas, nó na garganta, respiração ofegante. E o grande momento, onde diante de nós está o outro, ali, esperando passivamente pela avalanche de palavras que a princípio não saem, não descem a montanha, mas que aos poucos, uma a uma, começam a brotar e nossos olhos se dilatam buscando analisar cada expressão facial, cada gesto corporal do outro, esperando que nos dê uma pista de como as palavras chegam aos seus ouvidos e, principalmente, como são processadas em seu coração e discernidas por sua mente.
 
        Sabemos que nossas palavras se misturam aos pensamentos já consolidados do outro, por isto, nos demoramos em elaborar as ideias, com o cuidado de quem pisa sobre ovos. Sabemos que nossas palavras podem ferir e magoar e criar lacunas e espaços vazios entre nós e o outro. Sabemos também que o outro processa nossas informações sobre seu ponto de vista.
 
        Contudo, o mais maravilhoso de todo este processo - o qual necessitávamos passar - é que depois que começamos não queremos mais parar, pois a sensação de alívio é tão grande que todas as outras ficam para trás. Então percebemos que o outro também de sente bem, pois o alívio é recíproco, já que nem todos sabem exatamente por onde ou como iniciar uma conversa, menos ainda, conduzi-la. Resta-nos esta tarefa, já que a vida nos brindou esta capacidade.
 
        Bendita seja a palavra que liberta nossos corações sem ferir o outro, que assume a função de luz ao esclarecer fatos, retirar dúvidas e, bendita a palavra que brota da fonte de nossa essência para ajudar o outro a nos conhecer, mas, acima de tudo a se conhecer.