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Gosto de compartilhar pensamentos e vivências, porque ao retirá-los de mim posso enxergá-los melhor.

domingo, 30 de setembro de 2012

Possibilidades

        Amanhã. Quantos amanhãs ainda teremos? O suficiente para dar conta de todos os compromissos que o mundo moderno nos impõe? Quanto a mim não sei dizer. Talvez eu consiga realizar alguns, se eu tiver amanhã. Nossa prepotência às vezes é ceifada pelo suspiro final. Longe de mim pensar na morte. Mas quero pensar no hoje e ter para o amanhã pensamentos de possibilidades e não de certezas.
        Possivelmente me levantarei às cinco da manhã e irei trabalhar. Possivelmente chegarei bem no trabalho e realizarei o que possivelmente for o melhor de mim. Possivelmente terei colegas de trabalho com os quais não comungo as ideias. Possivelmente terei alunos que me chatearão e eu os chatearei. Possivelmente passarei alguma contrariedade e contrariarei alguém.
        Sim. Possivelmente, pois certezas são ilusões. Certezas são desejos petrificados que quando não se realizam nos deixam arrasados, infelizes e desconsolados.  A possibilidade é a abertura para o diferente, para o complementar.
        Cansei-me de desejar certezas e respostas que nunca vem. Cansei-me simplesmente. Quando nos abrimos às possibilidades, podemos viver mais, sentir mais. É possível que amanhã chova ou faça sol. É possível que eu encontre alguém que não vejo a muito tempo. É possível que eu faça um caminho novo para o trabalho. É possível que eu ria ou chore. É possível...
        Sempre desejei ter certezas: certeza de ser amada, certeza da carreira profissional, certeza do que comprar, certeza da certeza. No entanto a vida sempre me obrigou a saltar no escuro, a crer e arriscar. Acho que é a forma que a vida tem de me dizer que minha tendência é a petrificação das ideias, por isto me obriga a mudar constantemente, me obriga a abrir-me para as possibilidades.
        Que venham as possíveis realizações ou não. Se é assim que deve ser a minha vida. Amém.

sábado, 29 de setembro de 2012

Luna

        Para quem não sabe a Luna é a minha cachorra. É uma vira lata que peguei no Riacho Grande e que creio eu ter nascido em setembro, portanto, ela estaria completando três anos este mês. Falando assim, parece algo comum, mas ela não é comum, pelo menos para mim.
        Eu já tinha um cachorro - o Lui - que eu trouxera de Peruíbe um pouco no susto. Ele era o último de uma ninhada de seis. Consideravam-no o mais feio, mas ele é lindo. Ainda bem que não o quiseram. Como ele ficava quase o dia todo sozinho eu me sentia mal, desejava que ele tivesse um companheiro para compartilhar suas aventuras por meu quintal.
        Acabavam de inaugurar o rodoanel e minha irmã e eu, decidimos dar um passeio até o Riacho Grande para sentir como era dirigir no tal rodoanel. Rapidamente chegamos. Comemos algo na tradicional feirinha, olhamos um pouco de artesanato e logo nos deparamos com um casal de cachorros sendo doados. Eram dois irmãos - um macho e uma fêmea - diziam que eram labradores, como eu nunca tivera cachorro de raça, acreditei. Minha irmã ficou encantada com os dois, mas eu, com o coração partido por separar os irmãos, disse que só levaria um e preferiria a fêmea de pelo preto e brilhante.
        Ela tinha outro nome - Tati - mas como nossa prima se chama Tatiana pensamos que não seria nada interessante manter este nome, então, a cem quilômetros por hora, olhei a cachorra no colo de minha irmã e disse: "Ela vai se chamar Luna". "Legal" - disse minha irmã. "Agora você é a Luna" - afirmou abraçando a cachorra que mais parecia estar em depressão.
        Luna está comigo há quase três anos. Evidente que ela não é labradora, mas tem um porte atlético interessante. Corre e salta longas distâncias. O que mais me chama a atenção é o fato de ela não permitir que a pegue no colo e nem que lhe faça carinhos sem ser no pescoço. Ela mantém uma postura altiva: cabeça erguida enquanto lhe coço. Sempre desejei pegá-la no colo, assim como faço naturalmente com o Lui. Mas ela não permite. Sempre que pode me olha de relance, como para constatar se eu a observo. Ela não perde nenhum dos meus movimentos e quando quer carinho puxa a minha mão, mas não permite que eu a abrace.
        Quando viajei à Europa o mascote de minha irmã caçula foi morto numa briga e suspeitamos que tenha sido ela a autora do crime, pois desde que os outros cachorros chegaram ela se  mostra dona do território. Todos a admiram e andam atrás dela. Particularmente hoje, me dei conta de que ela pensa que deve cuidar de mim, por isto não deixa que eu cuide dela.
         Estava eu podando uns pingos de ouro quando ouvi os gritos de minha irmã caçula: "Li!!! Olha isso!!!" Quando olhei, minha irmã estava com a Luna no colo, toda dócil. Confesso que senti ciúmes quase que mortal, mas controlei-me. Depois de alguns instantes lá estava ela a meu lado. Cocei seu pescoço e entendi que por mais orgulhosa que ela seja, permitiu que minha irmã a pegasse no colo como um pedido de desculpas por ter ferido mortalmente seu querido Brownie.
        Tenho eu que consolar-me com o fato de ela não me perder de vista. Olhar-me furtivamente como se não estivesse interessada e quando quiser, buscar o meu carinho a seu modo. Sei que é sua maneira mais pura de me amar, por isto a respeito e sou feliz por tê-la a meu lado. 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A emulsão

        Quando fui à Bienal do Livro em São Paulo neste ano não desejava comprar nada. Das vezes anteriores precisei controlar minha compulsão e mesmo assim sai com sacolas de livros, muitos dos quais nunca cheguei a ler. Desta vez a quantidade de pessoas era absurda e da mesma forma a quantidade de títulos para vender. Um livro me chamou a atenção, apenas um livro que desde então permanece em minha cabeceira divertindo-me e provocando-me nestas noites de insônia e ansiedade.
        Rubem Alves em Ostra feliz não faz pérola abusa de seu direito literário adquirido e escreve sobre tudo. Acabo de ler algo que conta de sua infância e que eu, mesmo sem ter a sua idade, compartilho em partes. Ele conta que sentira saudades de algo ruim que se tornara bom. Explico. Em sua infância havia uma emulsão chamada "óleo de fígado de bacalhau", era uma espécie de fortificante. Um líquido branco e pastoso feito do fígado do bacalhau, de sabor horroroso e cheiro pior ainda. Ele diz que se lembrara de sua mãe dando-lhe uma colher da emulsão com a mão direita e na esquerda a parte de uma laranja para amenizar o cheiro e sabor.
        Do lugar que estou revivi a minha experiência com a emulsão, pois onde hoje é meu quarto, naquela época era nossa cozinha. A lembrança do armário que guardava o vidro comprido com a foto de um homem encurvado carregando um bacalhau do seu tamanho faz-me nausear. A minha cena é a seguinte: na mão direita de minha mãe a colher com o líquido pastoso e fedorento, na mão esquerda o chinelo pronto para atingir-me caso eu me negasse a bebê-lo. O argumento era: você deve beber porque faz bem à saúde.
        Eu não estava doente. Não tinha nenhuma enfermidade. Então para que tomar aquela coisa? Ninguém sabia explicar-me. A resposta era sempre a mesma: porque faz bem à saúde. Creio que tanto a mãe de Rubem Alves e a minha quisessem nosso bem. Mas há uma grande diferença entre as duas. Ao oferecer a laranja ao filho, sua mãe lhe ensinara a não fugir do que não gostasse por pior que lhe parecesse, porque sempre haveria uma maneira de amenizar as coisas. Enquanto a minha me ensinou a engolir o pior sem questionar para não correr o risco de receber algo pior ainda. E o mais irônico: "para o meu bem".  

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A queda

        Lá fora a chuva cai intensa e mansamente. Pelo ruído posso imaginar sua densidade. Constante, firme e certeira. O frio corta minha pele, apesar de já estarmos na primavera. Estou confusa. Não sei se leio ou escrevo; se durmo ou acordo; se falo ou me calo. Há um cansaço espiritual que permeia meus sentidos, como um anestésico, uma droga que nunca usei. Minha razão luta para compreender o que se passa, deseja reorganizar, reestruturar, dar sentido e recompor o descomposto. Enquanto a emoção grita para parar, deixar fluir como a água da chuva.
        Não sinto fome e quando como a garganta azeda. Não tenho sono, mas os olhos teimam em fechar para tão logo se abrirem. Penso em fazer mil coisas e o corpo não se anima. Sou toda contrassenso, descompasso, instabilidade e incerteza.
        Perguntam-me se estou melhor e nem sei exatamente do que deveria melhorar. Não é como das outras vezes, é menos, mas é. Não sei se devo alegrar-me por ser menos ou entristecer-me por acontecer novamente. "Simplesmente agradeça", me dizes tu. E eu obedeço, pois devemos ouvir quem nos quer bem. Obedeço sem saber porque obedecer. Talvez porque desta vez há um tripé que me sustenta, um tríplice bem querer que antes não havia. São três anjos que em círculo e de mãos dadas me amparam. Por isto eu agradeço. Não que os meus não me queiram bem, eu sei que querem, eu os sinto comigo, mas nada podem fazer a não ser respeitar o processo. E por isto agradeço.
        Ser algoz de si mesma. Exigir-se em demasia. Não satisfazer-se consigo mesma. Cobrar-se mais e mais. Absorver o que está a sua volta. Tomar à frente. São atitudes compassivas ou excesso de vaidade? É postura solidária ou dominadora? Para alguns a resposta deve ser clara, mas não para uma geminiana que ainda por cima não acredita em horóscopo. Os contrários, os dois lados, o duo estão sempre presentes em meus pensamentos. Seria tão mais fácil ser reta como uma flecha...
        Não há tristeza, há perplexidade. Perplexidade pela fragilidade que pensava superada. Cá estou novamente débil, reformulando-me, reinventando-me, reconhecendo-me. Mas desta vez não estou só e talvez seja esta a mais feliz das quedas que já tive.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A palavra

        Alimento-me de palavras e imagens, minha alma sobrevive dos sentimentos que as palavras e as imagens produzem. Leio e releio cartas, e-mails, mensagem de texto, post de facebook e até  bilhetinhos. Nossa! Como as palavras sustentam meu espírito, meu ânimo, minha esperança e minha fé. Vejo e revejo as mesmas fotografias dezenas de vezes.
 
        A cada releitura uma palavra nova me chama a atenção, ou mesmo uma vírgula muda todo o sentido e penso: "Por que não a intepretei assim quando a li pela primeira vez?" As fotografias revelam novos aspectos: um sorriso de canto de boca, um olhar mais ou menos brilhante, uma ruga de preocupação.
 
        Deleito-me olhando e ouvindo. Posso amar uma pessoa enquanto a escuto. Gosto do movimento dos olhos, das sombracelhas, da boca e todos os gestos que o outro revela mesmo que esteja dizendo o contrário. Por vezes pego-me olhando demoradamente para alguém. É uma das maneiras que sei de amar.
 
        Quando eu era criança e ficava admirada com uma professora eu apenas a olhava intensamente. Não tinha coragem de dizer o quanto a amava. Então, fixamente a olhava e mentalmente lhe dizia. Acreditava que de alguma forma minhas palavras pensadas chegariam em seu coração.
 
        Neste processo de aprender a falar, que leva a vida toda, tento pesar cada uma, mas às vezes elas me escapam como uma cachoeira violenta e amedrontam, assustam e até machucam. E a palavra, assim como a água da cachoeira, não volta atrás. Elas seguem arrastando tudo o que vêem pela frente.
 
       Alimento-me de palavras e quando elas de mim se soltam nesta enxurrada de vernáculos, enfraqueço-me, sinto-me vazia e confusa. Perco as referências. Assim como uma pessoa desnutrida, reinicio o processo de alimentar-me, mas agora pela fraqueza tudo deve ser menos, aos poucos.
 
 
 
 
 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A partida de dama

        Admira-me a independência que nossos sentimentos têm da nossa razão. Posso ter uma ideia clara em minha mente, um raciocínio lógico-matemático construído perfeitamente e meu corpo dizer e sentir o contrário. As marcas emocionais são eternas e cumulativas. Aprendemos a conviver com elas, as educamos, mas não as apagamos. Às vezes elas retornam para nos avisar que estão ali latentes, a espreita de um espaço para aflorar.
        A vida é um jogo. Cada dia é uma partida. Ora se ganha ora se perde. E assim seguimos. Nossos adversários nem sempre seguem as mesmas regras e o juiz nem sempre consegue ver tudo. Enquanto escrevo veio-me à mente a única imagem interativa que tive com meu avô paterno: uma partida de dama aos sete anos. Ele mal falava, pois havia sofrido dois derrames. Como eu não o compreendia e tinha medo de sua severidade, nunca conversamos, exceto esta vez em que ele me convidou para uma partida de dama. Era um tabuleiro pequeno de papel, mas foi o jogo da minha vida. Ele ganhou todas as partidas. Sorria por me ganhar. Quando terminamos não me senti frustrada, eu o admirei. Meu avô era o melhor jogador de dama do mundo - pensei. Eu não havia conseguido ganhar nenhuma vez.
        Esta experiência me fez pensar que eu precisaria aprender muito para chegar a ser igual a meu avô. No fundo esta partida norteou a minha postura no jogo da vida. Dali em diante sempre joguei baralho, figurinha, bola, fubeca, peão e até pedrinhas. Se eu perdesse, depois treinava até a exaustão e na próxima vez só entrava para jogar desde que apostássemos tudo o que tínhamos. Algumas vezes ganhei e outras perdi, mas nunca voltei para casa reclamando por ter perdido, uma competição honesta dava gosto perder.
        Eu tinha amigos cujos pais quando jogavam os deixavam ganhar, então pensavam que eram os melhores do mundo. Quando de fato jogavam comigo, uma igual, perdiam, o que resultava em choradeira e briga. Não aceitavam a derrota, chamavam um irmão mais velho ou a mãe para brigar com a gente e reaver os seus bens. Acostumados a "ganhar" dos adultos, viam-se soberanos.
        Estas pessoas são hoje aquelas que pisam em seus colegas no trabalho. Que sofrem inveja doentia da competência dos mesmos, pois apenas desenvolveram a competitividade. São pessoas que adoram semear a discórdia e causar atritos. Estas pessoas magoam, machucam, pois jogam sujo. Produzem suas próprias regras e manipulam os outros.
        Eu agradeço ao meu avô por ter me ensinado uma única lição, mas que servira para toda a minha vida. Agora preciso aprender novas estratégias neste jogo da vida. Estratégias para afinar minha mente ao coração, pois quando descompassam, a minha melodia desafina e adoeço.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

A solidariedade

        No livro Ostra feliz não faz pérola Rubem Alves conta: "Frequentemente pessoas me perguntam sobre o "método" que uso para escrever uma estória para crianças. Houve uma que chegou a me perguntar sobre a "teoria" de que eu me valia... Coisa de gente acostumada aos jeitos universitários. Nem método nem teoria. Tudo começa com uma coceira. Coceira é coisa que incomoda. A coceira pode ser, por exemplo, a ansiedade de uma criança em ser operada. Ou a ansiedade de uma criança diante da sua indiferença: ela se julga feia, é deficiente, tem um defeito físico. A dor da criança se transforma em coceira na gente. Aí eu começo a coçar e vou coçando, até sair sangue. Quando o sangue sai, a estória está pronta para ser escrita. Como dizia Nietzche, é preciso escrever com sangue".
        A coceira de Rubem Alves provém de uma situação com crianças, a minha, com adolescentes. É uma coceira infernal. Ela acompanha meus passos até em casa, e olha que eu moro longe. Depois fica coçando, coçando e para eu me livrar pego minhas ferramentas e vou para o jardim. Mas a 'mardita' vai comigo e coça, coça, até sair sangue. A coceira de hoje é mais ou menos assim...
        Havia um reino muito distante que se vangloriava por ter tudo o que precisava. Os súbitos do rei o amavam. Todos tinham onde morar. Ninguém era analfabeto, até idiomas estrangeiros aprendiam. Também desfrutavam de médicos e cuidados da saúde. Todos tinham transporte privado e público. No esporte eram campeões, mas o rei passou a ser criticado pelos reinos vizinhos por não ter um reino solidário. Como as pessoas não careciam de nada, elas não haviam cultivado a solidariedade. Como o rei era muito competitivo e não queria que seu reino ficasse atrás de nenhuma outra, teve uma ideia: lançaria uma campanha de solidariedade.
        A primeira vez ele tentou, alegando que seus súbitos deveriam praticar a solidariedade, pois como tinham muito poderiam compartilhar. Nada aconteceu. Então, aconselhado por seus conselheiros, teve a seguinte ideia: premiar os grupos de súditos com um baile a fantasia. Neste baile haveria um prêmio para a melhor fantasia. Como todos estavam acostumados à competição, iniciaram um movimento de arrecadação de bens materiais para doar e chamaram isto de campanha solidária. Nenhum súdito se preocupou em perguntar para quem seriam doados os bens. Apenas pensavam em qual seria a fantasia mais bonita, a que ostentasse mais poder e glória.
        Claro que nem todos gostaram da ideia, então protestavam à sua maneira, não contribuindo com os bens. Como nenhum rei é ingênuo ou de todo honesto, percebendo o protesto de alguns, decidiu formar grupos de súditos e premiá-los pelo desempenho grupal, assim, garantiria que discutissem entre si e se esquecessem dele. Como um semi-deus o rei observava as discussões, as ofensas e os ataques entre seus súditos que gastavam mais do que tinham para serem solidários.
        Cada grupo deveria ter um representante legal e um ancião como conselheiro. Quase todos os conselheiros eram súditos diretos do rei, mas um em especial, por forças das circunstâncias havia ganhado esta honra mesmo sendo de outro reino. Todos os grupos contavam com conselheiros competitivos, sedentos de vitória, acostumados ao podium, menos este.
        A sorte fora lançada e tal conselheiro viu-se em meio a um grupo cuja representante era uma linda jovem, de espírito competitivo, mas não de todo gananciosa. Havia algo dentro dela, uma terra boa onde a semente da solidariedade poderia ser plantada, contudo, a força da tradição local e a situação não a permitia enxergar-se desta maneira. Como todos os outros grupos ela desejava ganhar e ser solidária ao mesmo tempo.
        O conselheiro decidira encontrar o limiar do bom senso. Em nada alteraria seu reino esta competição, mas como havia sido acolhido pelo rei naquele reino, lhe oferecia respeito. O conselheiro sabia que solidariedade não é algo que se impõe. Ela é circunstancial e está vinculada não apenas à ajuda, mas ao compromisso que se assume com o outro. E ali não havia compromisso, seria apenas uma campanha, sem que se soubesse exatamente para quem iria tal ajuda. O conselheiro sabia que a solidariedade está no assumir uma causa junto. Até os ladrões são solidários quando ocultam um ao outro da polícia. Somente os psicopatas são incapazes de ser solidários, mas isto por uma questão fisiológica.
        Estava lançado um dos maiores desafios do conselheiro. Colocou-se e se retirou várias vezes. Lançou ideias ao ar, provocou pontos de vista e zelou pela amizade do grupo, pois sabia que tudo o que os outros grupos desejavam era que houvesse discórdia e divisão. A divisão enfraquece. Haviam superado a maioria dos desafios com dignidade e honestidade. Esforçavam-se em manter o diálogo e a democracia, mesmo com tantas pessoas pensando diferente.
        O grupo já estava consolidado, mesmo sabendo que suas chances de atingir as metas do rei estavam longe de ser realizadas. Até que o conselheiro caiu na grande armadilha. A armadilha do afeto. Sua relação com a linda jovem beirava o discipulado e lhe alegrava o coração que a jovem lhe ouvisse. Porém, não havia percebido que este relacionamento despertava ciúmes e inveja em outras jovens que haviam desejado ser escolhidas para representar o grupo. Então, uma palavra traiçoeira atingiu-lhe afetando-lhe os sentidos. Desejou retirar a jovem da posição que estava, magoou-a com palavras severas e desejou colocá-la em lugar seguro. Queria que ela estivesse longe de tais maldades, conhecia seu potencial e também sua ingenuidade. Por mais solidária que a jovem desejasse ser, não conhecera a carência material. Sua carência era afetiva, por isto, sabia ser naturalmente solidária com quem carecia de afeto.
        O conselheiro passara a temer a reação da jovem caso não ganhassem. O quanto sofreria? Saberia aceitar o fracasso, alguém que sempre fizera o melhor? Tais pensamentos produziam angústias no conselheiro e, após esta forte experiência, decidira que precisaria ser humilde o bastante para respeitar o processo da jovem, mesmo que ela sofresse, pois assim, aprenderia por si mesma e seu aprendizado seria mais consistente.    

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A pizza

        Hoje me dei conta de um hábito que tenho. Assim como alguns homens antes de ir para casa param num bar e pedem uma pinga, eu paro numa padaria, assento-me junto ao balcão e peço: "um pedaço de pizza". Preferencialmente de quatro queijos.
        Não são todos os dias. Apenas naqueles em que não quero levar os problemas para casa, ou pelo menos não todos. Assentar-me junto ao balcão e pedir um pedaço de pizza, mastigar pedacinho por pedacinho, vez ou outra olhando o programa inútil de algum pérfido canal de televisão, alivia a minha tensão.
        Hoje, particularmente, havia um paradoxo para digerir junto à pizza. Fora reunião de pais e enquanto uma mãe distorcia todas as minhas palavras, outra me acenava do lado de fora da sala de aula mandando beijos. Enquanto uma me desafiava a explicar o que eu estava fazendo por seu filho, outra me abraçava e me agradecia pelo que eu havia feito. A velha questão de não ser mãe é o trunfo das mães: "Você não quer me ensinar a ser mãe, não é mesmo?" "Não senhora, só posso falar como professora".
        Nestes dias a alma da gente é sugada, pois, as pessoas humilhadas pelo mau rendimento de seus filhos, tentam encontrar uma falha em nosso trabalho. Ou, pior ainda, dizem com todas as letras que não sabem mais o que fazer. "Nem eu" - complemento. De fato eu não sei. O que sei, porque aprendi a duras penas, é que nosso sucesso depende de nosso empenho, em grande parte. Que a disciplina para alcançar um objetivo já é meio caminho andado. Mas as pessoas têm medo da palavra disciplina, como se ela fosse sinônimo de prisão ou tolhimento. O que as pessoas não percebem é que disciplina nada tem de tolhimento, pelo contrário, é a manutenção constante da liberdade.
        Aprendi estes dias com minha terapeuta, evidentemente, que uma criança com rotina se sente mais amada. Faz todo sentido. A rotina saudável propõe segurança. Quando temos uma rotina sabemos o que nos espera, não ficamos à mercê da sorte ou da boa vontade de alguém. Não estou falando da mesmice e sim da capacidade de mudar objetivamente.
        Paralelo a este paradigma pude viver uma emoção positiva ao ver um jogo de futebol feminino. E pensar que eu jogava tão bem, mas não o suficiente para motivar um(a) professor(a) de educação física a montar um time. Não havia rotina na minha vida, não havia constância, planejamento. Cada dia era uma surpresa - dependia do humor da mãe. Ou mudávamos de casa, ou de horário na escola, ou ela mudava de namorado, ou queria mudar o meu jeito de me vestir, ou mudava a religião etc.
        Talvez os homens que param todos os dias no bar para tomar uma pinga o fazem buscando uma rotina. Talvez não a tivessem na infância e não conseguem se sentir amados por suas famílias. Eu ainda não me viciei em pizza. Creio que isto não acontecerá, não consigo manter constância nem em um vício. Logo aquilo me enjoa e me cansa.
        Este ano a vida me presenteou com uma maravilhosa rotina. Uma rotina afetiva que alimenta minha alma. Sei que no próximo ano ela mudará e me preparo para enfrentá-la. Não será negativo, apenas diferente, nova. Assim como uma criança tenho me mantido. Trabalho o sentimento de insegurança diariamente e pouco a pouco a vida tem se tornado mais doce.

sábado, 15 de setembro de 2012

Carta de amor

        "Não mexe comigo que eu não ando só..." canta Maria Bethânia enquanto escrevo. Esta bela voz me reconforta das saudades que sinto de minha tia. Sua juventude fora marcada pelos rebeldes da ditadura e, eu criança, arquivei em meu inconsciente sua imagem dançando pela casa enquanto fumava e tomava cerveja. Seus LPs com grandes fotografias do rosto dos cantores ainda habitam minha mente.
        "Eu não ando só..." Eu tenho todos os meus mortos: pai, bisavós, tios, tias, avós, primos, amigos... Tenho Iemanjá a quem fui oferecida e batizada no mar aos sete anos, morrendo em sete ondas. Tenho a Santa Joana D'Arc e sua loucura corajosa, a quem ofereci minha adolescência. Tenho ao doutor Bezerra de Menezes que acolhera meu pai na eternidade. Tenho a São Francisco de Assis a quem ofereci minha juventude vivendo em fraternidade, assumindo a pobreza, a obediência e a castidade. Tenho a Jesus Cristo a quem me consagrei como esposa espiritual. Tenho a Shiva a quem dediquei minha espiritualidade. Tenho à minha fé que mesclada à minha razão sustenta os meus dias, alimenta a minha alma e dá sentido aos meus passos.
        O que tenho a dizer a quem busca construir sua fé? Nada além de que não podemos viver só. Só com a razão ou só com a emoção. Que a fé não pode ser ingênua quando precisa ser madura. Que a fé deve crescer com o teu pé e a tua cabeça para não ser esquizofrênica e incoerente. Que a fé às vezes será a única coisa que você terá em alguns momentos da vida. Que a fé se cultiva como uma flor rara e delicada. Que a fé em si mesma deve ser anterior à fé no outro.
        "Não mexe comigo que eu não ando só, eu não ando só, eu não ando só..."

   

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O medo

        Gostaria de escrever, mas tenho medo. Não sei exatamente por onde começar porque tenho medo de não conseguir terminar e não saber concluir. Tenho medo do que vão interpretar, analisar e deduzir. Porque o medo ronda nossas ações e nos deixa angustiados, nos aperta o coração até parecer que o ar não sairá voluntariamente de nossos pulmões.

        Eu tenho medo de não conseguir amparar os que sofrem de medo. Consolar a quem está conhecendo a nova face do medo. Sim! Nova face. Quando somos criança o medo tem cara de Bicho-Papão, Homem do Saco, Cuca, Bruxa, Vampiro, Saci Pererê etc. Quando crescemos um pouco, aparece o medo da morte, não necessariamente nossa morte, mas a morte dos que amamos: nossos pais, nossos avós, tios, irmãos e amigos. O tempo passa e a nova face com a qual o medo se apresenta se chama fim do ensino médio, vestibular, faculdade, primeiro emprego, amigos que vão para o até um dia ou nunca mais.

        O medo de perder quem conquistamos, de ter que começar novamente, de não ter a certeza que o mundo nos exige. De não saber se fizemos a escolha certa. O medo aperta o peito sem nos darmos conta e quando percebemos, estamos sem ar, respirando como se precisássemos retirar o fôlego do dedão do pé. E um não sei direito o quê remexe dentro da gente. Da vontade de sair correndo e ficar parado ao mesmo tempo. De gritar e de calar. De rir e de chorar. A gente parece que sabe o que é, mas se começa a explicar, não é nada daquilo.

        Eu tenho medo de não compreender o medo de quem sente medo. De não ser solidária e acolher. Tenho medo de deixar passar em branco o fato de já ter sentido exatamente este mesmo medo. Este mesmo: não sei o quê. E, tenho mais medo ainda, de ser presunçosa e achar que posso livrar alguém deste medo, pois ele não é algo para se temer, é para viver. É a memória do que sentimos em nosso nascimento, daquele momento fatídico em que precisamos aprender a respirar, por isto choramos, gritamos até. A quem desejar nascer de novo, aproveite, este é o momento.

sábado, 1 de setembro de 2012

A fúria

        Esperei intensamente pelo fim de semana para que eu pudesse deleitar-me no trabalho duro e suado da jardinagem. Durante a semana fico imaginando as coisas que farei, as plantas de podarei ou mudarei de lugar. Meu trabalho não se resume nisso, às vezes é preciso construir algo, então tenho que usar serrote, martelo, chave de fenda, furadeira etc. Minha força física não é lá essas coisas então demoro mais para realizar algumas tarefas. Tudo isto para depois de toda suja e suada deleitar os meus sentidos.
        Hoje estou particularmente furiosa, uma fúria positiva claro. Levantei-me bem cedo, apesar de ser sábado e fui para a labuta que havia planejado. Comecei pelo lado ainda em sobra, mas logo o sol chegou para derreter o que resta dos meus miolos. Até então sempre considerei os seres vegetais e minerais numa escala inferior à minha, e até os meus cachorros. Acontece que ouvi um diálogo entre duas flores e me dei conta do tão incompleto somos. Vou me explicar. O diálogo foi mais ou menos assim:
        - Olha! Lá vem ela com todo o seu arsenal: avental, luvas, boné e um monte de ferramentas.
        - Coitada, deixa ela ser feliz. Vai trabalhar o dia todo para depois se sentar uns minutinhos e ficar contemplando o que fez, beber algo e acabou. Continuará desejando mais.
        - Se ela soubesse como o Criador a fez talvez sofresse menos.
        - Ah! Mas esta espécie é incapaz de compreender estas coisas.
        - Que pena, não é mesmo? Você se lembra da criação? O Criador foi criando tudo o que existe. Fez os minerais, os vegetais e os animais.
        - Verdade. Eu me lembro de cada elemento químico, cada átomo e gotas de água do mar, o firmamento e as estrelas. Ele estava inspirado.
        - Sim, estava tão inspirado que resolveu abrir um buraco no chão. Jogou lá dentro um pouco de tudo o que havia criado e misturou para ver no que dava. Saíram estes tais de humanos. Tão incompletos. Desejam a plenitude, mas não compreendem que não a alcançarão. Daí desejam cada vez mais, conquistam cada vez mais e continuam sentindo-se incompletos, vazios de algo.
        - Eles não são como nós, plenos. Somos plenamente flor, a pedra é plenamente pedra e o cachorro é plenamente cachorro. Mas os humanos não são plenos, precisam trabalhar-se constantemente para descobrirem sua humanidade.
        - Tenho pena deles.
        - Eu também, mas enquanto eles não compreenderem esta verdade, nos usarão para se sentirem plenos.
        Quando terminaram a conversa, cai sentada atônita, sem palavras. Sai de meu transe com minha cachorra lambendo o meu rosto. Eu sou um pouco do todo.