Quem sou eu

Minha foto
Gosto de compartilhar pensamentos e vivências, porque ao retirá-los de mim posso enxergá-los melhor.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

A solidariedade

        No livro Ostra feliz não faz pérola Rubem Alves conta: "Frequentemente pessoas me perguntam sobre o "método" que uso para escrever uma estória para crianças. Houve uma que chegou a me perguntar sobre a "teoria" de que eu me valia... Coisa de gente acostumada aos jeitos universitários. Nem método nem teoria. Tudo começa com uma coceira. Coceira é coisa que incomoda. A coceira pode ser, por exemplo, a ansiedade de uma criança em ser operada. Ou a ansiedade de uma criança diante da sua indiferença: ela se julga feia, é deficiente, tem um defeito físico. A dor da criança se transforma em coceira na gente. Aí eu começo a coçar e vou coçando, até sair sangue. Quando o sangue sai, a estória está pronta para ser escrita. Como dizia Nietzche, é preciso escrever com sangue".
        A coceira de Rubem Alves provém de uma situação com crianças, a minha, com adolescentes. É uma coceira infernal. Ela acompanha meus passos até em casa, e olha que eu moro longe. Depois fica coçando, coçando e para eu me livrar pego minhas ferramentas e vou para o jardim. Mas a 'mardita' vai comigo e coça, coça, até sair sangue. A coceira de hoje é mais ou menos assim...
        Havia um reino muito distante que se vangloriava por ter tudo o que precisava. Os súbitos do rei o amavam. Todos tinham onde morar. Ninguém era analfabeto, até idiomas estrangeiros aprendiam. Também desfrutavam de médicos e cuidados da saúde. Todos tinham transporte privado e público. No esporte eram campeões, mas o rei passou a ser criticado pelos reinos vizinhos por não ter um reino solidário. Como as pessoas não careciam de nada, elas não haviam cultivado a solidariedade. Como o rei era muito competitivo e não queria que seu reino ficasse atrás de nenhuma outra, teve uma ideia: lançaria uma campanha de solidariedade.
        A primeira vez ele tentou, alegando que seus súbitos deveriam praticar a solidariedade, pois como tinham muito poderiam compartilhar. Nada aconteceu. Então, aconselhado por seus conselheiros, teve a seguinte ideia: premiar os grupos de súditos com um baile a fantasia. Neste baile haveria um prêmio para a melhor fantasia. Como todos estavam acostumados à competição, iniciaram um movimento de arrecadação de bens materiais para doar e chamaram isto de campanha solidária. Nenhum súdito se preocupou em perguntar para quem seriam doados os bens. Apenas pensavam em qual seria a fantasia mais bonita, a que ostentasse mais poder e glória.
        Claro que nem todos gostaram da ideia, então protestavam à sua maneira, não contribuindo com os bens. Como nenhum rei é ingênuo ou de todo honesto, percebendo o protesto de alguns, decidiu formar grupos de súditos e premiá-los pelo desempenho grupal, assim, garantiria que discutissem entre si e se esquecessem dele. Como um semi-deus o rei observava as discussões, as ofensas e os ataques entre seus súditos que gastavam mais do que tinham para serem solidários.
        Cada grupo deveria ter um representante legal e um ancião como conselheiro. Quase todos os conselheiros eram súditos diretos do rei, mas um em especial, por forças das circunstâncias havia ganhado esta honra mesmo sendo de outro reino. Todos os grupos contavam com conselheiros competitivos, sedentos de vitória, acostumados ao podium, menos este.
        A sorte fora lançada e tal conselheiro viu-se em meio a um grupo cuja representante era uma linda jovem, de espírito competitivo, mas não de todo gananciosa. Havia algo dentro dela, uma terra boa onde a semente da solidariedade poderia ser plantada, contudo, a força da tradição local e a situação não a permitia enxergar-se desta maneira. Como todos os outros grupos ela desejava ganhar e ser solidária ao mesmo tempo.
        O conselheiro decidira encontrar o limiar do bom senso. Em nada alteraria seu reino esta competição, mas como havia sido acolhido pelo rei naquele reino, lhe oferecia respeito. O conselheiro sabia que solidariedade não é algo que se impõe. Ela é circunstancial e está vinculada não apenas à ajuda, mas ao compromisso que se assume com o outro. E ali não havia compromisso, seria apenas uma campanha, sem que se soubesse exatamente para quem iria tal ajuda. O conselheiro sabia que a solidariedade está no assumir uma causa junto. Até os ladrões são solidários quando ocultam um ao outro da polícia. Somente os psicopatas são incapazes de ser solidários, mas isto por uma questão fisiológica.
        Estava lançado um dos maiores desafios do conselheiro. Colocou-se e se retirou várias vezes. Lançou ideias ao ar, provocou pontos de vista e zelou pela amizade do grupo, pois sabia que tudo o que os outros grupos desejavam era que houvesse discórdia e divisão. A divisão enfraquece. Haviam superado a maioria dos desafios com dignidade e honestidade. Esforçavam-se em manter o diálogo e a democracia, mesmo com tantas pessoas pensando diferente.
        O grupo já estava consolidado, mesmo sabendo que suas chances de atingir as metas do rei estavam longe de ser realizadas. Até que o conselheiro caiu na grande armadilha. A armadilha do afeto. Sua relação com a linda jovem beirava o discipulado e lhe alegrava o coração que a jovem lhe ouvisse. Porém, não havia percebido que este relacionamento despertava ciúmes e inveja em outras jovens que haviam desejado ser escolhidas para representar o grupo. Então, uma palavra traiçoeira atingiu-lhe afetando-lhe os sentidos. Desejou retirar a jovem da posição que estava, magoou-a com palavras severas e desejou colocá-la em lugar seguro. Queria que ela estivesse longe de tais maldades, conhecia seu potencial e também sua ingenuidade. Por mais solidária que a jovem desejasse ser, não conhecera a carência material. Sua carência era afetiva, por isto, sabia ser naturalmente solidária com quem carecia de afeto.
        O conselheiro passara a temer a reação da jovem caso não ganhassem. O quanto sofreria? Saberia aceitar o fracasso, alguém que sempre fizera o melhor? Tais pensamentos produziam angústias no conselheiro e, após esta forte experiência, decidira que precisaria ser humilde o bastante para respeitar o processo da jovem, mesmo que ela sofresse, pois assim, aprenderia por si mesma e seu aprendizado seria mais consistente.    

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quer compartilhar tua opinião?