Num destes dias permiti que o espírito da
Dita baixasse, porque confesso não ter muito prazer em incorporá-la, não que eu
seja uma pessoa pouca limpa, mas defendo a ideia de manter tudo bem organizado,
assim não parece que está sujo. Voltando ao espírito de Dita, permiti que ela
me possuísse e saí limpando tudo. Minha escrivaninha sempre a deixo por último,
já que não se restringe apenas à limpeza, mas a um verdadeiro ritual de
desobsessão. Analiso cada papel, apontamento, sobras e quinquilharias. O mais
interessante é que quase sempre não me lembro do motivo de haver guardado tais
coisas.
Estava quase terminando quando minha mão
bateu contra algo, lançando-o ao chão. Pelo barulho que fez, temi haver
quebrado. Não me lembrava de deixar qualquer coisa em cima da escrivaninha que
pudesse quebrar. Agachei-me procurando o que seria. Ao olhar embaixo da estante
de livros vi uma pequena pedra, e então, uma história adormecida despertou.
Acabara de completar trinta e cinco anos.
Estava num novo momento da minha vida, pois há apenas seis meses havia saído de
um casamento mais ou menos longo. Tinha resolvido deixar o cabelo voltar a
crescer, pois assim como as de Sansão, minhas forças cresceriam novamente. Um
feriado se aproximava, em uma semana seria Corpus
Christi. Evento que me remetia a
outra vida passada e que também desejava deixar por lá. “Vamos à Paraty?” –
motivou-me minha irmã. Sem dúvidas Paraty seria um bom lugar para passear, pelo
que escutava aquele era um lugar mágico. Reservas feitas, passagens compradas e
uma mochila nova nas costas. Presente de aniversário da irmãzinha.
Tudo o que vimos e vivemos naqueles três
dias mágicos merecem cada um, sua própria história. Os casarões antigos, as
ruas de pedra, o mar, as ilhas, os passeios de barco me faziam pensar em tantas
vidas ali vividas, quantas histórias, quanto passado e presente. Há uma energia
diferente naquelas ruas e pular de um barco no meio do mar era algo que eu
sonhara tantas e tantas vezes.
No último dia resolvemos, pela manhã,
conhecer uma ilha famosa da região. Famosa porque a única coisa que havia na
ilha era um bar. Atravessamos numa pequena lancha muito agitada pelas ondas. Ao
pisar na ilha avistamos as mesinhas do bar, nos sentamos e pedimos uma cerveja
que fora servida em taças, balde de gelo e um preço exorbitante. Mas, valeria a
pena, pois não voltaríamos ali, justificamos.
Após alguns goles resolvi andar um pouco
ao redor da ilha. Sentimentos de quem lera a Ilha Perdida no ensino
fundamental. Cheguei a um ponto cheio de pedras, eram pedras lisas e porosas,
muitas pedras. Sabia que não deveria levar nenhuma dali por uma questão
ambiental. Peguei uma delas, senti sua textura, peso e temperatura. Seria justo
levá-la? Aqui não estava mais em jogo o ambiente, mas o fato de retirar algo de
seu habitat natural, separar de seus iguais. Ela poderia sentir-se deslocada,
infeliz por deixar o mar que a cada cinco ou seis segundos a banhava para, em
minha casa e por meu capricho, virar suporte de papel.
Permaneci por algum tempo lutando com
meus sentimentos de deslocamento. Até que um raciocínio prevaleceu. Eu levaria
duas pedras para que uma fizesse companhia à outra. Estas pedras e o sentimento
de culpa que eu desenvolvera por havê-las retirado de sua origem me obrigariam
a voltar em outro momento e devolvê-las. Seria uma espécie de compromisso. Como e onde
estaria eu dali a alguns anos? Não havia eu também me deslocado a tantos outros
lugares e voltado às minhas origens?
Recolhi uma grande e outra pequena, numa
espécie de filiação, irmandade, forte e fraco, algo assim. Vieram aconchegadas
em minha mochila nova. E desde então estão sobre minha escrivaninha. Já voltei
à Paraty duas vezes após esta viagem e não tive coragem de levá-las. Pensava que
não teria mais o direito de deslocá-las novamente, pois poderia acontecer de
suas iguais não estarem mais lá, seja porque aos poucos as ondas do mar as
conduziram a outras partes da ilha, seja porque o dono do bar resolvera
expandir seu negócio.
Ao ver a pedra menor debaixo da minha
estante de livros, compreendi que elas haviam me seduzido naquele dia, porque
desejavam conhecer outros tipos de mares. E, agora eu tinha a obrigação de deslocá-las para que continuassem sua viagem e quando fosse o momento certo voltassem à sua origem, não necessariamente por minhas mãos.
A menor deveria ir primeiro, não porque tivesse preferência, mas
porque já sabia para onde queria ir.
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