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sábado, 19 de maio de 2012

A pipa

              Ele não era muito presente e em sua paternidade imatura lutava contra seus próprios fantasmas. Numa das raríssimas vezes, e por um motivo que somente ele sabia, concedeu-me um pouco de sua atenção e decidiu ajudar-me a fazer uma pipa.

              Sim, uma pipa, já que as bonecas e panelinhas não me atraiam nas brincadeiras. Se fosse para brincar de mamãe ou de casinha, o faria de adulta. Desejava divertir-me de verdade e me parecia que somente aos meninos lhes fora dado este direito.

             Comecei pela capucheta de jornal. Um horror. Corria de um lado a outro desesperadamente e quando conseguia olhar para trás lá estava ela esbodegada no chão. Eu queria mesmo uma pipa que voasse muito alto ao ponto de eu ter medo de não conseguir trazê-lo de volta. Por mais que tentasse não conseguia calcular bem o peso, a quantidade de cola, o tamanho da rabiola, a envergadura do estirante. Era muita engenharia para uma menina de sete anos.

            Então numa noite, decidiu me ajudar. Cortou as varetas e em pouco tempo eu via uma estrela. Fiquei fascinada com sua inteligência. Meu pai havia feito mais do que uma pipa, havia feito uma estrela! Nenhum dos meninos tinha igual. Isso mesmo, meninos! Porque as meninas me cansavam com seus gritinhos e puxões de cabelos. 

            Meu desejo em soltá-lo era tanto que se não fosse noite teria ido à rua imediatamente. Como eu poderia dormir? Tamanha era a ansiedade. Contudo, dormir seria a melhor maneira das horas passarem logo, o problema era conseguir desligar a minha mente que o imaginava no ar com aquela rabiola em forma de arco. E se ele não subisse? Subiria, meu pai era inteligente, não teria feito algo que não funcionasse.

          Já não me lembro da hora em que adormeci, mas recordo-me de no dia seguinte ir o mais depressa possível no bar comprar linha dez. Precisava ser uma linha adequada, forte, senão eu o perderia, pois o vento a romperia. Não, nem pensar em perder minha pipa, minha estrela! 

          Precisava agora encontrar uma lata que coubesse na minha mão para enrolar a linha. Por incrível que pareça era muito difícil encontrar uma lata. As únicas mais disponíveis eram de óleo, muito grande para as mãos de uma criança. Acho que usei uma de achocolatado.

          Toda a manhã se passara neste ritual preparatório. O almoço estava pronto, teria que comer mesmo sem fome, era a condição para poder sair e ver a minha estrela no céu. Eu tinha uma estrela!

         Finalmente tudo o que eu precisava estava à mão. Decidira ir à rua de cima, porque ali não passavam muitos carros. Caminhava orgulhosa sobre o pedregulho das ruas sem asfalto, ora batendo o dedão em pedras grandes, ora tendo que parar para arrumar a correia do chinelo que escapava. Fui até o final da rua, analisei o vento, soltei um pouco de linha e corri. Corri como se pisasse em nuvens. A pipa começou a subir, mais alto que as árvores, e eu, no meu êxtase não percebi que a rabiola havia enganchado numas folhas. A pipa então rodopiou e parou entre alguns galhos altos demais para que eu subisse. Tinha medo de altura.

         Sentei-me próxima ao tronco. Estava sozinha com minha angústia e decepção. Não adiantaria chamar minha mãe, ela não subiria na árvore. Meu pai chegaria à noite e certamente ficaria tão decepcionado com minha incapacidade de cuidar de algo que me fizera que nem se daria ao trabalho de resgatá-lo para mim.

        Desconsolada, quase chorando percebi uma presença, um jovem estava ao meu lado:

        - Esta pipa é tua? - perguntou num tom amigável.

       - É sim, mas eu não consigo pegá-lo.

       - Quer que eu pegue?

       - Quero sim - disse eu acreditando que meu fracasso não seria total. Alguém me ajudaria.

       Facilmente ele subiu na árvore e sem nenhum dano o retirou de entre os galhos. Meu coração batia nervosamente e eu acompanhava cada movimento seu. Quando baixou, eu estendi as mãos, mas ele sem nenhuma piedade ergueu os braços o mais alto que pôde e disse:

       - Agora ele é meu, porque fui eu quem o achou.

      Confesso que por muitas vezes pensei em sua impiedade. E ainda hoje posso ver seu rosto escancaradamente divertindo-se de meu desespero. Considerei-o um ladrão e me culpei por ficar paralisada e não me jogar em cima dele tentando resgatar minha estrela, ou pelo menos, ter-lhe lançado uma pedra. Mas, hoje, creio que ninguém rouba nossa estrela, nós a perdemos por nossa imaturidade, medos, insegurança e ansiedade em vê-la brilhar.  



      






    








  
        











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