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segunda-feira, 21 de maio de 2012

O Anjo das Muitas Faces


 Lembro-me de meu aniversário de 23 anos. Era prática na fraternidade comemorar o aniversário das missionárias com uma longa oração, onde cada uma relacionava o evangelho do dia com a vida da aniversariante. Um dos poucos momentos onde recebíamos algum tipo de elogio. Contudo, se ainda não tivéssemos os votos definitivos éramos quase insignificantes. Isto servia como uma espécie de treino de humildade. Sendo o meu aniversário próximo ao de outra missionária de votos definitivos, o ritual era mais simples ainda, para não ofuscar o da outra e para que eu aprendesse o dom sublime da resignação.

Estávamos à mesa, após as orações, as quais na verdade nem me lembro do que rezei. Não ríamos muito, ao contrário do costume, aliás, eu estava bastante infeliz. Quando de repente ouvimos um grito de gato. Não tínhamos animais domésticos, apenas galinhas para o abate. O silêncio que reinava enquanto comíamos aquele bolo seco de sentimentos fez com que o grito fosse mais intensamente percebido. Aproveitando-se do meu imaginário produtivo, a superiora ferozmente, como se ela mesma assumisse a pele do gato, dirigiu-me seu olhar mais perturbador e disse:

- É você quem atrai estas coisas. – Como se aquele grito fosse um mau-augúrio.

Senti um frio na espinha e como em tantas outras vezes achei que minha falta de sorte era evidente. Sorri tristemente e baixei os olhos sem nada dizer. Havia naquela mulher algo de diabólico que, sem eu saber por que, refletia em mim. Seus olhos faiscavam quando me viam, seu pescoço ficava vermelho como o das galinhas quando mortas e penduradas de cabeça para baixo. Sua testa suava e com um esforço medonho, controlava seus instintos mais primitivos.

Ela exercia sobre mim um controle imaginário, já que eu, dada a escrever minhas fantasias, por vezes permitia que sua loucura me afetasse. Mas sem que eu me desse conta, o que lhe enraivecia era sua incapacidade de dominar e controlar os meus sonhos mais profundos de afeto, felicidade e esperança. Esperança de que um dia eu seria verdadeiramente feliz.

Os anos se passaram e além desta vida vivi outras, tão fielmente como um cão vira-lata embaixo da ponte junto ao seu dono bêbado. Tão intensamente quanto uma poetisa romântica e platônica. Até que minhas forças mais internas ruíram, restando-me a sobrevivência. Às vésperas de cumprir 40 anos, e vivendo a mais serena felicidade, volto àquele momento como expectadora e não mais como atriz. O que me permite fazer uma releitura mais fiel.

O que realmente aconteceu naquele dia. Vejamos:

Minhas súplicas de felicidade foram elevadas a Deus, e Ele na sua infinita misericórdia, perguntou aos anjos de plantão, qual deles se encarregaria de mim. Houve ali uma pequena discussão, alguns já estavam ocupados cuidando de gente famosa como a Angélica, Márcio Garcia, Cláudia Abreu, Luciana Gimenez e outros tantos. Não queriam se ocupar de mim, uma pobre mortal nas garras de uma religiosa-diabólica, paradoxalmente falando. Até que um deles disse impulsivamente:

- Eu vou vai! Deixa comigo que eu cuido dela.

Admirados e desconfiados olharam-se pensando com seus botões celestiais: “Será que ele dá conta?” “Sei não...” “Deixa, vamos ver no que é que vai dar.” "Ainda é estagiário". Deus na sua infinita benevolência sorriu dos ciúmes que se estabelecera e voltando à sua onipotência ordenou: “Que seja você, Anjo das Muitas Faces!” Era chamado assim, porque tinha o hábito de brincar na arena celeste imitando as faces dos humanos.

Alegremente, Anjo das Muitas Faces disse:

- Obrigado, Senhor. Cuidarei dela com todas as minhas forças.

Deus, que admirava a disposição dos jovens anjos, gargalhou. Fazendo com que todo coro angelical o imitasse. Sentando-se ao lado do Anjo, abraçou-o contra seu peito e paternalmente disse:

- Meu querido Anjo, leve consigo o meu afeto, leve o quanto couber em seu coração angelical porque esta criatura que você cuidará estará com o coração ferido e desconsolado. Resistirá a ti muitas e muitas vezes, você precisará ter paciência, e como uma aranha que tece sua teia ao redor da presa, você terá que tecer a teia do afeto ao seu redor.

Lançando um olhar filial aos olhos de Deus, Anjo sorriu e perguntou:

- Senhor, eu não estava com medo, mas agora, ouvindo tuas palavras, vejo que esta missão pode estar além das minhas forças. Quanto tempo durará? E se eu falhar?

O Senhor que é também um Deus maternal envolveu Anjo em seus braços e amavelmente sussurrou em seu ouvido:

- Assim como a trindade você terá três anos. E não falhará meu amado Anjo.

- Como o Senhor pode ter tanta certeza se deu a estas criaturas o livre-arbítrio?
- Porque mesmo sem ter consciência, foi por você que ela pediu em suas preces mais íntimas, e principalmente, porque um coração, por mais ferido que esteja não resiste ao amor gratuito e teimoso de um anjo estagiário.  
















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