Trabalhava dia e noite no campo, desejava ter o seu lugarzinho ao sol pelo reconhecimento de seus esforços. Mas aprendera com a vida que nem tudo dependia de si, precisava de um milagre que aumentasse suas posses para que investisse e comprasse seu espaço e milagres nem sempre aconteciam.
Como sua profissão exigia mudanças não ficava muito tempo no mesmo lugar, neste campo estava há poucos anos. Era um campo muito grande e vistoso, com árvores antigas, frondosas e galhos amplos. Não havia quem não o admirasse. Por ser um campo tão bem cuidado, se perguntava o que fazia ali já que excelentes profissionais haviam feito um admirável trabalho. Aos poucos descobriu que sua principal tarefa era podar as árvores para que elas voltassem a florescer e se renovassem. Precisava separar os galhos que se entrelaçavam uns nos galhos das outras para que voltassem a se reconhecer individualmente.
Não. Esta não seria uma tarefa fácil. De modo algum teria forças para fazer isto. Eram galhos maiores do que si. Desejou desistir várias vezes. Seria uma loucura e seu cansaço pelos anos de trabalho era um fator importante a se considerar.
Numa destas manhãs pensativas onde tudo parecia justificar sua ida, ouviu ao longe o canto de um canário ainda filhote aprendendo a cantar. Como um flash, cenas voltaram à sua mente. Cenas de sua adolescência e de tudo o que sonhara para sua vida naquela época. Aos treze anos ganhara um casal de canários. A fêmea era toda amarela e o macho amarelo com tons marrons. Eram lindos e cantavam maravilhosamente bem. A fêmea chegara a botar ovinhos, dos quais nunca nasceram filhotes. Precisou retirá-los do ninho para que a passarinha não morresse de inanição. Na época havia se sentido tão egoísta por mantê-los numa gaiola para seu deleite próprio e, teve tanta pena daquele pobre casal sem filhotes, que resolveu soltá-los. Sua ingenuidade não levou em conta o fato deles nascerem em cativeiros e não saberem viver livremente. Mas, em sua ânsia de remissão, soltou-os impulsionando-os aos céus.
E agora, num momento tão decisivo, ouvia aquele canto gratuito e sincero. Desejando ouvi-lo novamente, permaneceu. Considerou por bem iniciar as podas pelos galhos mais finos e flexíveis, deixando para outro momento, ou até quem sabe, para outra pessoa, a poda dos galhos maiores.
Aquele treino de canto alegrava tanto sua vida e trabalho que desejava que a manhã seguinte chegasse logo, só para ouvi-lo. Quem teria o privilégio de observar o desabrochar de um pássaro como o canário? E ainda assim, livremente?! Aos poucos o pássaro acostumou-se com sua presença e foi chegando cada vez mais perto, ao ponto de pousar em seu ombro e cantar em seu ouvido. As pessoas ficavam encantadas com aquela cena e sempre comentavam.
Com o passar do tempo percebeu que o pássaro lhe indicava qual galho podar, facilitando seu discernimento e criando um laço de cumplicidade entre duas criaturas tão distintas. Algo que poucos poderiam entender. Se falasse para alguém poderiam considerar loucura: "O pássaro orienta o teu trabalho?!" - perguntariam às gargalhadas. "Em que mundo você vive?" Sabia que era verdade e isto bastava.
Numa bela manhã de outono, se deu conta de que faltavam poucos galhos finos e que o canário não ficaria ali para sempre. Estava deixando de ser filhote. Em pouco tempo teria que cantar em outras terras. Passou a lutar com o pior dos sentimentos. A posse. Sim, precisava filtrar constantemente suas atitudes. Até onde elas revelavam o sentimento de posse? O desejo de recolher para si aquele pássaro e colocá-lo em sua gaiola, em sua medida e peso? Tê-lo cantando só para si? Amava-o tanto.
Era tradição festas anual no campo. E a mais popular delas se aproximava. Nesta festa os camponeses apresentavam suas produções. E como acontecia numa parte bastante florida era comum que muitos pássaros aparecerem também, de forma que havia uma mistura de cantos e vozes humanas ao entardecer da festa. Fascinante para quem não estava acostumado. Era realmente um evento muito comentado. Sabia que seu pássaro estaria ali em meio aos outros. Foi quando percebeu estar diante de um grande desafio e a possibilidade de uma pequena grande prova de amor e gratidão.
Nesta festa acontecia um tipo de premiação que elevava significativamente o status do vencedor. Era a oportunidade que muitos desejavam para sair do anonimato e conquistar seu lugar ao sol. Sabia que suas chances de ganhar, naquele ano, eram grandes. Se o pássaro que alegrava suas manhãs, aproximando-se e cantando em seu ombro, fizesse o mesmo diante de todos. Ah! Com toda certeza ganharia, porque aquele não era um pássaro nascido em cativeiro, não estava acostumado a seu dono e com as asas cortadas para não voar. Era um pássaro livre, espontâneo, que de alguma maneira acreditava e não temia o ser humano.
Por várias vezes se imaginou em meio àquela multidão eufórica. Sua presença segura e firme no centro e sem ninguém saber de onde, surgiria aquela belíssima criatura, cheia de vida, que pousaria em seu ombro e cantaria o melhor de seus cantos. Todos os corações seriam tocados, as pessoas se arrepiariam e lágrimas involuntárias rolariam pelas faces. Admiração! Sim! Mais do que reconhecimento desejava admiração. Mas o pássaro era livre e poderia não aparecer. Talvez nem se importasse com esta festa. Talvez sua preocupação primeira fosse cantar para ser feliz e terminar de crescer para poder voar e cantar em outros campos. Por isto, precisaria ter certeza de que o pássaro se apresentaria na festa, e esta certeza só seria concreta se o capturasse e o levasse em uma gaiola.
Lutou com seus sentimentos dia e noite. Perguntou-se porque necessitaria do reconhecimento de tantos outros, além de seu próprio? Olhou-se profundamente no espelho e interrogou sua alma. Por que precisaria da admiração de outros, apenas por um dia, por algo extraordinário se já vivia o extraordinário todos os dias? Que lugar ao sol seria este além do que já conquistara pelos espaços abertos dos galhos podados? Não. Não queria ver novamente um pássaro na gaiola, e muito menos um canário do reino.
Esperou pela festa como quem espera por uma diversão, porque o milagre já havia acontecido.
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