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segunda-feira, 29 de julho de 2013

A madre má

      
        O Papa Francisco veio visitar o Brasil e uma forte onda de catolicismo invadiu os corações jovens, aparentemente isto é bom, mas temo por eles. Muitos decidirão se dedicar à vida religiosa, porque a presença do Papa os encantará e eu rezo profundamente para que pensem melhor, que desejem ser bons cristãos no mundo, em suas casas, escolas, trabalho, grupos de amigos.

        Aos dezessete anos conheci um grupo de missionárias e me encantei. Aos dezoito saí de casa e contra a vontade da minha família entrei para a vida religiosa. Eu achava que tinha um chamado de Deus, que poderia ajudar o próximo, que faria a diferença neste mundo. Hoje sei que tudo não passava de uma espécie de "fuga", de busca do que eu não tinha em casa. Alguns jovens buscam as drogas, outros a prostituição, outros o crime, eu busquei a religião. 

       O processo consistia em passar dois anos numa etapa chamada "estudantado" onde eu viveria numa "casa de formação" estudando e trabalhando, sob a orientação e supervisão de uma "formadora", até eu fazer os votos de pobreza, obediência e castidade. Junto comigo havia ido uma colega de bairro e dividíamos um quarto e um pequeno guarda-roupa. Nossa rotina consistia em levantar às cinco da manhã, preparar o café, despertar as outras com uma música, preparar a oração do dia, rezar, tomar café, estudar, trabalhar na horta, lavar, passar, cozinhar, limpar a capela, dar catequese e terminar o ensino médio à noite numa escola à duas horas de viagem, chegar em casa à uma da madrugada, levantar às cinco....Aos fins de semana era permitido levantar às oito, mas quem o fizesse ficava rotulada de preguiçosa, então levantávamos antes.

         Nosso lazer se resumia em tocar um pouco de violão, jogar peteca e baralho, mas quem o fizesse era rotulada de irresponsável, então quase nunca tínhamos lazer. Assistir televisão só era permitido no horário do noticiário, aos sábados víamos um filme escolhido pela madre superiora, mesmo que não quiséssemos.

        Durante a semana vivíamos na casa de formação apenas nós três: eu, minha colega e nossa formadora, a Lourdes, intitulada irmã Lourdes, a tratarei aqui pelo nome. Aos fins de semana as outras missionárias chegavam das missões e tínhamos que preparar tudo para que elas descansassem. 

        Com a convivência fui me apegando à minha formadora, nós tínhamos um bom relacionamento e meu amor por ela foi crescendo. Conversávamos muito, ela me contava como havia decidido ser freira, como saíra de casa, as dificuldades que encontrara e eu cada vez mais apegada. Dentro do meu coração ela passou a ser minha mãe, mas não tínhamos gestos afetivos, e eu me sentia profundamente carente. Sentia muita falta da minha irmãzinha que havia deixado, da minha mãe e até do meu irmão. 

        Uma noite, me lembro como se fosse hoje, ela me chamou para uma conversa de repreensão, eu nunca sabia o que tinha feito de errado: ora era a cama que eu não tinha arrumado direito, ora era o meu vocabulário, ora era a minha roupa, ora era a minha falta de amor fraterno etc. Na sua obrigação de formadora ela me repreendeu e eu, arrasada comecei a chorar, não aguentava mais aquelas repreensões, por mais que eu tentasse acertar, fazia tudo errado. Então eu disse: "Eu só queria que você me desse um abraço". Ela se assustou e comovida me abraçou, daquele dia em diante ela passou a me tratar com mais afeto. Quando estávamos na capela em oração, ela permitia que eu me deitasse em seu ombro, então ela me dava um beijo na testa e me desejava boa noite. 

        Mas, isto não durou muito tempo. Minha colega reclamou com a madre superiora sobre eu ser tratada assim e ela não. O inferno havia começado. Numa noite a madre superiora apareceu e se trancou com minha formadora na capela, em pouco tempo pude ouvir os gritos de choro de minha formadora e os gritos da superiora: "Ela não é tua filha, você entendeu? Você vai se afastar dela". De repente, a porta se abriu e Lourdes entrou correndo no banheiro para vomitar. Seu choro e sua dor eram tão intensos que ela vomitou a bilis. 

        Já no dia seguinte passei a ser tratada com rispidez e nos seis anos seguintes que ali permaneci, vivi no inferno. Todas às vezes que me aproximava dela, fosse para lavar roupa, me sentar à mesa, na horta, ela me dizia: "Sai de perto de mim", principalmente quando a madre superiora estava por perto. Não havia ódio em suas palavras, havia medo, um medo terrível de ser novamente repreendida. Eu, infeliz, me afastava. 

        Quando entrei para o convento eu tinha dezoito anos e ela quarenta. Sai aos vinte e quatro. 

        Durante minha estadia no inferno, atuei com adolescentes na faixa etária de 13 a 15 anos, nos grupos chamados de "perseverança".  E foi com eles que cometi meus maiores pecados. Todos os sábados eles estavam ali, gostavam de participar, de tocar violão, de cantar, de se preparar para ler na missa, carregar a cestinha da oferta, mas hoje percebo que eles gostavam de estar comigo, que de alguma forma eu lhes fazia bem, eu lhes valorizava. 

        Quando estávamos no auge de nosso grupo a madre superiora me mudava de missão e me proibia de me despedir deles alegando que eu não era importante, que eu não deveria anunciar a mim mesma, mas a Deus. Eu covardemente aceitava, claro que chorava baldes no travesseiro sem ninguém escutar, mas não tinha a coragem de contra argumentar. Então, quando eu ia, eles também iam, revoltados e me acusando de traição, de tê-los feito se apegar e depois os abandonado. 

        Alguém pode se perguntar porque não peguei as minhas coisas e sai chutando tudo. Eu não sei, acho que quando a nossa estima está baixa demais ao ponto de nos sentirmos menos do que o pó da terra, nos submetemos aos piores castigos desde que alguém nos dê atenção, nem que seja uma migalha. 

        Hoje eu sou uma formadora, novamente de adolescentes. A princípio tentei me manter neutra sendo apenas uma reprodutora de uma pequeno conhecimento. Lutei demais para manter esta postura pelo pânico de ferir novamente alguém, de fazer o que fizeram comigo e que aprendi a fazer. Mas a vida é cheia de peças, de armadilhas e artimanhas e, quando menos esperamos, estamos diante de nossos fantasmas.







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