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Gosto de compartilhar pensamentos e vivências, porque ao retirá-los de mim posso enxergá-los melhor.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Oração de fim de ano

        É hora de agradecer. Há tanto por agradecer que nem cabe numa lista. O principal é a vida, estar viva e chegar ao final de mais um ano é algo a agradecer, quantos não chegaram. Muitas foram as minhas oportunidades e agora consigo reconhecê-las. Por todas eu sou grata.
 
        Sou grata pelas noites que dormi e também pelas que não dormi.
 
        Sou grata por todos os abraços que ganhei e por todos que pude dar.
 
        Sou grata pelas pessoas que conheci e pelas que já conhecia.
 
        Sou grata pelas pressões que consegui suportar e pelas que provoquei.

        Sou grata pelas situações que não compreendi e busco sentido.

        Sou grata pelas coisas que perdi e pelas que encontrei.

        Sou grata pelo que me tiraram e pelo que me deram.

        Sou grata pela saúde e pela doença.

        Sou grata pelo ar que respiro, pelo que vejo e pelo que toco.

        Sou grata por sentir e existir.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Meu fígado

        Há alguns anos atrás quando decidi, meio impulsivamente fazer um curso chamado Naturopatia, entrei em contato com teorias chinesas a respeito da saúde e da doença. Além de teorias indianas e de outras culturas milenares. O que mais me fascinou na época foi a visão holística que se desenvolve nestes estudos. Acho que de alguma forma eu já intuía tais conceitos, mas não sabia como explicá-los.
 
        Foi de fato um ano e meio de curso e interessantes aprendizagens, porém, há em mim um incômodo com as teorias. Elas sempre me insatisfazem. Quero dizer que por mais que eu aprenda, por mais que me expliquem, sempre fica o "será que é só isso"? E acabo me lançando no fogo do inferno das dúvidas. Mas hoje não pretendo destilar minhas incompreensões, mas sim refletir neste aprendizado e relacioná-lo ao meu estado atual.
 
        Recordo-me que tive um professor que nos explicou os conceitos básicos da medicina chinesa. Os elementos e suas relações com os órgãos e vísceras; os meridianos e os conceitos do Tao de yin e yang. Recebemos uma tabela para descobrir qual elemento nos rege, algo que calculávamos com nossa data de nascimento. Eu sou madeira. Ótimo. Mas o que isto significa? - perguntei-me.
 
        Não me lembro de todas as explicações, mas recordo-me que o órgão relacionado ao elemento madeira é o fígado e que o principal sentimento que lhe é relacionado é a raiva. Puxa. Não aceitei muito bem isto, acho até que fiquei com um pouco de raiva por saber, rsrs. Também aprendi que pessoas do elemento madeira desenvolvem enxaqueca. Não é fácil aceitar que se tem raiva. É quase como ter uma doença contagiosa, as pessoas não gostam de ficar próximas a quem tem raiva.
 
        Peguei-me em minha vida em vários acessos de raiva. Eu não queria ser assim, não queria ser conhecida como a nervosinha ou a raivosa. Passei a observar que algumas pessoas me viam exatamente da maneira contrária e aos poucos fui percebendo que a raiva não era a minha essência, mas apenas uma manifestação de que algo estava fora do meu controle, da minha possibilidade de compreensão. De criança eu costumava bater a cabeça na parede quando não aprendia algo. No começo minha mãe corria e me protegia, depois passou a deixar-me dizendo: "Quando  você sentir dor, vai parar". Então eu chorava até a exaustão.
 
        Acho que de alguma forma continuo batendo minha cabeça na parede e esta dor que agora me aflige é o sinal do momento de parar. Tenho uma voz doce e infantil que por vezes ressoa em minha mente dizendo: "Ah...por que você faz isso com você mesma?" Eu ainda não sei, meu bem. Só sei que estou cansada e quero parar, quero deixar ir embora tudo o que não preciso mais e ter a consciência limpa, com pensamentos frescos, novos e cheios de vida.
 

domingo, 23 de dezembro de 2012

A doença

        Há duas maneiras de parar nossa rotina e sair do esquema. Uma são as férias e a outra uma doença. Agora, quando unimos férias e doença, realmente perdemos o fluxo da nossa vida, perdemos o andar da carruagem, a direção e o sentido de muitas coisas.
 
        Quando saímos de férias quebramos a rotina pouco a pouco. Acordamos mais tarde, arrumamos as gavetas, jogamos fora ou doamos roupas e objetos que ficaram sem uso e perderam o sentido em nossa rotina. Mudamos os móveis de lugar, visitamos amigos que não visitávamos há tempos, vamos aos lugares que deixamos para outro dia e o tempo passa de maneira diferente.
 
        Mas quando estamos doentes e presos em um hospital o tempo nos condena à espera sem sentido, sem grandes movimentos além da luta para não sentir mais dor, a luta para não passar o dia todo na cama adormecendo nossos sentidos, a luta contra a falsa expectativa de alta, a luta contra o desespero de não ter a certeza de que sua vida está ou não em boas mãos, a luta contra sua própria ansiedade e a de seus familiares.

        Como sobreviver a si mesma nesta situação? Como não cair no abismo das perguntas sem respostas? Tais como: Por que eu? Por que justamente nas minhas férias? Por que nesta época do ano? E tantos porquês. Não sei se pensarei assim amanhã, mas hoje não me importa muito saber. Hoje quero sentir-me bem para que amanhã eu já me desperte bem. Talvez a vida seja exatamente assim. Não deixar com que as coisas se acumulem e tenhamos que fazer a faxina somente nas férias e que as férias não sejam apenas trinta dias do ano. E sim todos os dias. Talvez a vida queira me explicar que ela deve ser vivida totalmente cada dia. Em cada dia deve haver labuta e férias. Que a cada dia é preciso decidir jogar fora ou doar aquilo que já não me serve mais.

        Não reclamo minha condição, também não nego que ela me incomoda, mas quero sair muito mais saudável desta doença e muito mais pronta para viver cada dia da minha vida, sabendo separar os espaços e priorizar a essência
 
 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Disque abraço

        - Alô? É do céu?
 
        - Você discou para o Disque Abraço - departamento do céu especializado em pessoas carentes. Se você deseja um abraço normal tecle 1. Se você deseja um abraço apertado tecle 2. Se você deseja um abraço apertado e demorado tecle 3. E se você deseja um abraço apertado acompanhado de um beijo carinhoso tecle 4.

       Esse departamento realmente funciona.


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Façamos

        "Façamos o homem a nossa imagem e semelhança", disseram que foi isso o que Deus disse. No plural. Por diversas vezes esta frase surgiu em minha mente estes dias. Não leio a bíblia faz muito tempo e nem me interessa mais discutir teologia. "Façamos o homem a nossa imagem e semelhança". "Façamos o homem a nossa imagem e semelhança". "Façamos...semelhança." "...o homem..." "Façamos o homem...". "...o homem semelhança". Mas o que isto quer dizer?!
 
        Qual o sentido de tudo isto? Há sentido? De quê vale perguntar por quê, se nunca teremos resposta? De quê vale refletir e refletir sobre as possíveis causas se as respostas podem ser tantas e nenhuma?
 
        Fui a última pessoa a vê-lo consciente. Por quê? Quem me responderá? Fui a pessoa que assinou os papéis de sua internação, numa escala hierárquica responsavelmente distante. Por quê? Fui eu quem testemunhei o desespero de minha avó ao vê-lo entubado e inconsciente. Por quê? Alguém me explicará? Sei que não.
 
        - Ele está gelado! Ele não acorda! Acorda meu filho! Abre os olhos, filho! Ele não acorda...Ele não volta mais, né?
 
        - Não, vó. Ele não volta mais.
 
        Por que fora eu a dizer-lhe? Onde estão os outros? Onde estão todos que não aparecem para permitir-me enfraquecer? Os outros já se foram...um a um, sem explicações se foram...Se ao menos eu conseguisse crer...Se ao menos eu tivesse a esperança de um reencontro...Se ao menos eu tivesse as visões, sensações, pressentimentos que tantos outros têm...Nada me é explicado. E quando penso haver encontrado um suporte, um colo, um apoio, um alguém onde eu possa ser frágil, me decepciono novamente, como se fosse a primeira vez. "Você está bem?" É uma pergunta retórica, porque se tento explicar e dizer que não! Que estou cansada, chateada, triste...ouço de volta "...tá, tá, depois a gente conversa".
 
        "Façamos o homem...a nossa imagem e semelhança". Para quê Deus faria isto? Se não temos parâmetro, como vamos saber a quem nos assemelhamos? Todos os saberes teóricos e teológicos nunca deram conta. Os psicológicos me mantêm um pouco em pé, os filosóficos anestesiam minha consciência e por um breve período deixo de sentir dor. Mas hoje eu clamo pelo afetivo, pelo abraço apertado, pelo calor do corpo, pelo cheiro...mas ele não vêm.
 
        Estou tão cansada de perguntar. Nem sei mais se as respostas adiantariam. Talvez elas se transformariam em sementes de novas perguntas, pois minha sede de saber é imensa. O tudo do nada que sei é que ainda tenho a vida.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A morte

        Puta que pariu! Ufa!!! Por vezes me sinto como aqueles personagens ninjas que lutam o desenho inteiro, sem tréguas, sem nunca vencer, pois sempre aparece um inimigo maior, mais forte, mais feio. Tenho lutado contra meus fantasmas. Alguns já despachei para as profundezas do inferno, mas outros, ah...alguns ainda me assombram, me atormentam.
 
        Por que em muitas situações não consigo ter a firmeza de que não estou fazendo nada de errado? Que as minhas atitudes são normais, justificáveis e corretas? Por que me sinto uma devoradora de criancinhas?
 
        A sensação que tenho é de que enquanto eu não enfrentá-lo, eu nunca descubrirei minhas reais forças. Já encarei a morte dezenas de vezes e agora ela retorna e terei que suportar o peso das consequências de meu envolvimento nesta história sem fim. História de álcool, drogas, violências, traumas etc, etc, etc. Terei que carregar o peso de não saber se fiz a escolha certa e se não me envolver teria sido melhor. Vamos lá. Seja o que a vida quiser.
 
        Eu só queria que pelo menos uma vez a vida quisesse que eu não acreditasse em quem me diz que faço a coisa errada e que eu não mereço ser amada. Puxa...eu queria poder olhar nos olhos deste fantasma e pedir para que me diga o que vê. Que me diga verdadeiramente o que sente e me explique o que fiz para merecer tal condenação.
 
        Estou tão cansada...cansada de viver como se a qualquer momento algo ruim me fosse acontecer ou aos que de mim se aproximam. Viver como se eu estivesse acumulando provas que um dia serão usadas para me acusar. Viver como se eu não fosse digna de ser amada, querida, admirada.
 
        A morte está espreitando, posso sentir sua presença. Acostumei-me com ela. A morte de tantos entes queridos, a morte de tantos envolvimentos, de tantas amizades...estou cansada. Cansada de fazer com que as pessoas se afastem de mim, cansada de destruir e ter que reconstruir.
 
        Vamos lá, caminhar até que a dona morte se satisfaça e por um breve tempo de deixe em paz.
 

Acessibilidade

        Eu estava impaciente. Não me saía da cabeça a ideia de comprar um aparelho celular com dois chips e ainda manter o meu antigo aparelho. Seriam três operadoradas e suas maravilhosas promoções para eu desfrutar. Meu subconsciente sabia muito bem que ao final das promoções as operadoras fazem de nossas vidas um inferno, mas o impulso era mais forte.
        Após as aulas e a caminho de casa decidi parar no centro da cidade e enfrentar as multidões compulsivas pelos presentes da época . Eu já havia pesquisado modelos e preços na internet, mas comprar virtualmente nestas datas era certeza de espera angustiante. Não, eu queria agora.
        Acabei entrando na mesma loja onde eu comprara o aparelho antigo há um ano e meio. Perguntei por preço, valores, vantagens etc. Comprei. Agora faltava passar nas lojas das operadoras e obter planos bons e baratos. Aqueles em que a gente fala quinhentos mil minutos e paga centavos e que depois de uns meses passa a te deixar na mão. Fui na primeira e adquiri a linha que me daria acesso à voz do meu querido. Eu não queria mais suas mensagens no Facebook eu queira a sua voz.
        Fui para casa com aquela ansiedade de criança que ganha brinquedo novo. Mil e uma funções que com certeza não usarei a metade. Para meu desespero, percebi que teria que digitar todos os meus contatos, já que os mesmos estavam salvos no aparelho e não no cartão de memória. Passei dois ou três números que considerei essenciais e dirigi-me ao meu compromisso noturno.
        No dia seguinte resolvi adquirir o segundo chip e após pagar dois estacionamentos, descobri que a tal operadora só tinha lojas dentro do shopping. Quando finalmente encontrei-a comprei o chip e como já tinha fome passeie até a praça de alimentação. Foi ali que comprendi porque tantas pessoas usam o celular enquanto comem e o porquê de meu desespero pelo aparelho mesmo me considerando uma pessoa consciente dos malefícios das novas tecnologias.
        Enquanto tomava meu suco de laranja com acerola, me veio à mente uma cena do dia anterior. Logo após a compra do aparelho segui em direção à praça de alimentação. Escolhi fazer uma refeição mais saudável e com a bandeja na mão percorri o espaço da praça em busca de um lugar para me sentar. O local estava repleto de pessoas. Sentei-me num balcão com pessoas adultas ao meu lado e crianças à minha frente. Eu mal podia abrir os braços.
        As crianças estavam tão perto de mim que me senti à vontade para elogiar seus pratos coloridos. Evidentemente que não obtive resposta. Então meu antigo celular me avisou de que havia uma mensagem. Com malabarismos a li; por sorte não era aviso da operadora, mas o contato carinhoso de uma amiga querida.
        Esta cena me fez pensar que nós mudamos a nossa maneira de nos relacionarmos. Antes só comíamos com a família, na mesma mesa, na mesma hora e situação. Depois a televisão nos roubou o convívio e agora nossas ocupações nos mantêm ainda mais distantes de nossas famílias. Sentamo-nos para comer diante de pessoas que nunca vimos, e aquele prazer sublime de dialogar enquanto comemos nos foi retirado. Creio que é por isto que as pessoas usam tanto o celular em praças de alimentação, eles querem se sentir parte de algo.
        Trabalhamos, andamos e comemos entre a multidão, mas nos mantemos como ilhas. Estamos fisicamente próximos de pessoas com as quais não temos vínculos e, de certa forma, estes aparelhos acessam nossos entes queridos. Foi assim que me senti ao ler minha mensagem.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Camila

        Preciso escrever para tornar menos dolorosa minha espera. Não que meu estado seja grave, apenas uma infecção urinária, exageradamente incômoda. A injeção no quadrante direito superior logo começará a fazer efeito.  Enquanto espero o resultado do exame, observo o jardim do hospital, aliás, um lindo jardim. Vários homens trabalham na montagem dos enfeites de Natal. Recordo-me que ainda não liguei o pisca-pisca.

         Ocorre-me que este ano não dediquei muito tempo ao meu jardim. Quem o vê esporadicamente nem percebe suas necessidades, mas eu que estou ali todos os dias posso ver e sentir o desejo de uma planta por ser podada, regada, adubada e até acariciada.

         Eu poderia até me sentir triste ou descontente comigo mesma, pensando que  o abandonei  ou que fracassei em minhas obrigações. Porém, aos poucos me conscientizo de que fiz exatamente o contrário. Todas as plantas que ali estão já receberam, cada uma há seu tempo, os cuidados mais elementares, por isto agora elas caminham praticamente sozinhas e só precisam de mim em poucas situações.  

         Dou-me conta de que na verdade eu estive envolta com a mais bela e delicada planta que brotou no meu jardim. Inspirando-me no amor do Pequeno Príncipe por sua rosa, tentei cuidar de minha planta com toda a dedicação que meu coração e mente solicitaram. E fui tão feliz que agora ao vê-la enraizada, percebo que aos poucos ela não precisará mais de mim na mesma proporção.

         Seus galhos crescerão para todos os lados e dentro em breve produzirão frutos. Sei muito bem, que isto não significa deixá-la à mercê dos climas, preciso estar atenta, para regá-la quando demorar a chover. Adubá-la após tempestades que levam a terra das raízes e acarinhá-la quando se sentir solitária. E é exatamente esta sensibilidade que peço à Mãe Natureza que mantenha permanente em meu coração e em meus olhos, para que eu não me distraia e a deixe secar e nem para que eu exagere e a sufoque de água apodrecendo suas raízes. 

        Sei que no futuro muitos se admirarão por sua grandeza e desejarão descansar e acolher-se em sua frondosa copa. E eu me lembrarei de cada galhinho que vi nascer e serei sempre grata pela vida tê-la me confiado tão intensamente neste tempo delicado de enraizamentos. Mas, acima de tudo, por ela ter transformado o meu jardim na Floresta Encantada.

 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Perguntas

        Será que se nós tivéssemos várias vidas conseguiríamos descifrar nossos mistérios? Nos compreenderíamos melhor? Encontraríamos as respostas para nossas perguntas com mais rapidez e clareza? Ou na verdade, poucas pessoas desejam descifrar-se e este incômodo só pertence a uns poucos mortais?
 
        O que sei é que a vida tem um jeito pouco esclarecedor de me tratar. As coisas acontecem e somente após muito tempo elas se explicam. Será que seja porque eu não saiba perguntar ou não aceite de pronto a resposta dada? Será por que tenho mais medo do que imaginava? Eu não sei. Só sei que um dia elas aparecem, elas chegam.
 
        Eu só queria saber conviver bem com as dúvidas e receios até que as respostas chegassem e não sentir tantas emoções desconexas no mesmo dia. Queria ter mais clareza e discernimento dos fatos, das pessoas, das situações. Seria isto uma espécie de controle? De domínio? Me faria mais mal do que bem? Não sei, só sei que é assim. Lento, pouco a pouco, quando menos espero.
 
        Pedir a Deus tenho minhas ressalvas. É certo que Ele me dá o que peço, sempre acompanhado do mesmo manual de instruções com uma única linha: "Vire-se." Ah! É tudo tão estranho. Quando encontro alguém que me marcou de maneira negativa, logo me vem à cabeça: "Como pôde esta pessoa ter o peso que teve em minha vida?" E percebo que não é a pessoa em si, mas o que ela representou num determinado momento de minha história. Foram os seus papéis naquele espetáculo.
 
        Esta noite, conversando com uma pessoa querida que dividiu um período da vida comigo, me dei conta de que nossas vidas apesar de terem se cruzado, mantiveram memórias diferentes de nós mesmas. Eu, cheia de remorsos e traumas. Ela, repleta de lembranças de tardes com violão e ensaios de teatro comigo. Era a mesma cena e o mesmo palco. Fôra eu que escolhera meus papéis ou me foram atribuídos?
 
        Podemos escolher nossos papéis? Podemos decidir em qual palco atuar? Podemos contracenar com quem amamos? Ou tudo é fruto do acaso? Ou de uma identificação? Perguntas, perguntas...e poucas respostas. A única coisa que sei é que no palco que hoje atuo há mais sentido, há mais amor, há mais tolerância, há mais olhar, mais pele, mais suor, mais cheiro, mais braços e bocas. O que sei é que tanto corpo é o que sustenta a minha alma.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
   
 
 

Setenta

        São setenta posts. De onde vieram? Como consegui escrevê-los num ano tão cheio de atividades, compromissos e responsabilidades? Havia muito tempo que eu desejava voltar a escrever, bem mais de quinze anos. Sonhei com a oportunidade de fazê-lo. Não que me faltasse caneta, papel ou mesmo computador. Me faltava o impulso, o tema, o incômodo, a chama. É por isto que neste post de número setenta, vale a pena parar um pouco e refletir.
 
        O que eu consegui escrever senão minhas visões limitadas e, por vezes, adolescentes das emoções que vivenciei? Qual o valor literário dos meus textos? Nenhum, creio eu. Talvez um valor terapêutico. A sagrada mágica de depositar na tela em branco coisas com as quais não se sabe exatamente como lidar.
 
        Comecei pelas metáforas, mas logo perdi a mão. Necessitei me despir, usar a primeira pessoa, me olhar no espelho, me ver de longe. Sim. É exatamente esta a sensação que se tem após ler o que se publicou. Passado algum tempo, é como se outra pessoa houvesse escrito. 
 
        Nesta brincadeira de me escrever e me reler. Me descubro várias; assim como já me descobri numa colcha de retalhos, composta por pedacinhos nem sempre iguais e regulares de tudo aquilo que poderia compor uma única peça. São tantas as experiências, tantas as emoções que nada em mim permanece igual. A não ser os medos e algumas poucas angústias nascidas de um passado que teima em voltar.
 
        Este post 70 não é para relembrar dores, mágoas ou um passado conturbado. É para comemorar o meu retorno ao palco das letras, mesmo como uma humilde amadora. É para comemorar a vitória dos que caminham ao meu lado e de suas conquistas neste grande espetáculo que é a vida. É para agradecer os temas, a motivação, as metáforas, o incômodo que me propiciaram. É para dedicar-lhes e retribuir-lhes o carinho que alquimicamente retivemos no olhar, mesmo após enxergarmos nossas limitações.  
 
 
 
 

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Oração ao Tempo

        Como explicar o inexplicável? Como definir o indefinível? Hoje voltei a rezar como a muito tempo não fazia, pois a minha razão não encontra mais caminhos. Então é hora de dobrar os joelhos e humildemente pedir a Deus que reconstrua o que destrui, que cure o que machuquei, que console ao que magoei. E pedir ao tempo que em sua onipotência e misericórdia, olhe por nós.
 
 
 

domingo, 2 de dezembro de 2012

Sou grata

        Virei a folhinha do calendário. Menos de um mês para acabar o ano. Não gosto da palavra acabar, ela machuca e angustia. Está certo que em alguns momentos da vida a solicitamos, principalmente nos momentos de dor. Mas quando se trata de momentos felizes, ela não deveria ser mencionada. Quem sabe seria melhor usar palavras como passagem, mudança de ciclo, não sei, mas acabar é triste.
 
        Por outro lado, estas épocas são boas para uma faxina, seja da casa física, seja da casa interior. Separar o que precisa ser reciclado, ou até mesmo jogado fora. Está aí, reciclar seria melhor do que acabar! Reciclar ideias, posturas, relacionamentos, etc. Reconhecer o que foi bom e deve continuar, e o que não foi tão bom assim e precisa reciclar, dar novos ares. Creio que nem consegui ainda me dar conta de tudo o que aconteceu este ano.
 
        Trabalho, viagens, cursos, família, casa...e, acima de tudo amores. Dois grandiosíssimos amores que se complementam e me completam. Dois amores que me sustentaram todas às vezes que tropecei, que apanhei - literalmente - que precisei de um colo, de um abraço, de uma conversa, de um olhar, de um sorriso. Confesso que tive muito medo, medo de não ser verdade, medo de sofrer, medo de iludir-me, medo de me machucar, medo de não ser digna, medo, medo, medo...Medo de que a paciência do outro se esgotasse de mim.
 
        Caminho para o encerramento do ano com lágrimas involuntárias que brotam sem que eu perceba. E que quando sou amada escorrem por nossos corpos e se misturam com o nosso suor. Lágrimas que não consigo explicar de onde vêm. Não são de tristeza, nem de dor. Só sei que elas brotam de uma parte de mim que nunca fora explorada. Nascem de lugares que ninguém havia ousado conhecer e, que aos olhos do outro, é como descobrir um tesouro. Engraçado, por vezes me sinto como as cachoeiras que gosto de visitar, mas que é preciso atravessar caminhos difíceis para vê-la. 
 
        O que mais poderia acontecer de bom, senão, atravessarem as minhas pedras, os meus obstáculos? Eu sou grata pelos que chegaram até aqui. Pelos que me descobriram e me ajudaram a me descobrir. Eu sou grata pelos braços que me envolveram, pelas bocas que me beijaram e me sorriram. Eu sou grata pelas palavras de carinho. Eu sou grata pelas mensagens que teimo em guardar como um pedaço de si. Eu sou grata pelo amor que me dedicam. Eu sou grata por este ano e pelos que virão, pois, aconteça o que acontecer, tomem nossas vidas rumos diferentes, nada e niguém poderá retirar de nós tudo o que vivemos. Amém.
 
 Vocês me fazem tão bem...
 
 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O tempo

        Tudo o que eu não queria era usar este espaço com energias negativas, mas hoje meu peito está apertado como não ficava a muito tempo, por isto, preciso transferir esta respiração sufocante para algum lugar. Como é noite e tenho visitas, o melhor é deixá-la aqui por enquanto, até que o universo se encarregue de dissipá-la.
        Sinto como se eu fosse cair de muito alto, de uma altura que eu ainda não havia alcançado. E se, de fato, eu cair, creio que não me recuperarei mais. Tenho medo da força deste sentimento que até então tem sido bom. Tenho medo de que ele mostre sua outra face na mesma intensidade.
        Estou me cansando de brincar de esconde-esconde, como se eu fosse a outra. Como se eu tivesse uma chaga que deve ser ocultada. Estou me cansando de dizer não aos amigos para passar algumas horas ou dias com alguém que de fato gosto muito, mas tem medo de assumir que tem medo. Estou me cansando de fingir, já perdeu a graça. Estou me cansando de fazer de conta que está tudo bem, de que esta situação não me incomoda.
        O fim de ano se aproxima e tudo o que eu não queria era ter novamente esta sensação. Um aperto no peito sufocante, de não conseguir puxar a respiração. Eu realmente estou magoada, sentida, machucada. Não pensei que eu fosse gostar tanto, me envolver tanto. Não quero pensar que tenho sido usada como um passatempo, ou como garantia de alguns prazeres. Não posso me sentir assim novamente. Hoje eu tenho a certeza de que não mereço tal sentimento.
        Talvez seja esta a diferença entre o meu agora e o meu antes. Antes eu não sabia o meu valor, achava que havia feito algo errado, que merecia o que estava recebendo. Ah! Mas agora não. Quem sabe eu esteja vivendo isto justamente para fazer esta experiência e sair mais segura, mais pronta para enfrentar este mundão e encontrar alguém que não tenha medo.
        Decidi virar a ampulheta e demarcar o tempo da mudança. Será breve, pois um ano novo se aproxima e não tenho mais tempo. Ainda tenho tanto para descobrir de mim, tantas experiências para viver, tantos amores a desfrutar. Não, definitivamente, não quero arriscar o que conquistei até agora a duras penas, às custas da nudez de minha alma. De agora em diante o tempo é regressivo...

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Nossas riquezas

        Quando eu estava no ensino médio, descobri uma série de coisas que eu desejava fazer: intercâmbio, faculdade de medicina, Médicos Sem Fronteiras e tantas outras aventuras. Mera ilusão. Minha família nunca havia saído sequer de São Paulo, sair do país?! Era algum tipo de piada? Risadas coletivas, não, gargalhadas com direito a engasgo e tudo. Eu me sentia um lixo, um nada, menor que uma formiga. Era como se eu estivesse nua. A única coisa que minha família queria era que eu arrumasse um homem. E minha mãe me educava para a excelência do sexo.
        O tempo passou e, por caminhos que a vida determinou, minha irmã menor sempre permaneceu aos meus cuidados. Sem que eu me desse conta desenvolvi o hábito de ver em si a realização dos meus sonhos. Passei a desejar ajudá-la a realizar todos os sonhos que eu não havia realizado. Tentei convencê-la a fazer intercâmbio nos EUA, mas ela ria de mim, depois tentei convencê-la a fazer faculdade. Ela relutou muito tempo e acabou fazendo Pedagogia, mas hoje percebo que escolhera tal curso por minha influência. E tantas outras situações que se tornaria cansativo elencá-las.
        Afortunadamente houve um momento em que eu percebi que a sufocava com minhas ideias e não permitia que ela construisse e vivesse as suas.  A vida se encarregou de colocar-lhe muitos obstáculos e todos estavam fora do meu alcance transpô-los por ela. Havia em mim um desespero terrível por não conseguir orientá-la ou ajudá-la de uma forma efetiva. Foi exatamente nesta época que ela encontrou seu caminho e passou a trilhá-lo. Absurdamente diferente do que eu havia imaginado para ela.
        Decidiu e enfrentou um concurso com 140.000 candidatos e passou. Enfrentou cinco etapas eliminatórias e classificatórias. Hoje ela ocupa o cargo que 139.000 pessoas desejaram. É uma profissional competentíssima e eu a admiro profundamente. Eu a vejo mais feliz do que em qualquer outro momento. E o mais importante, tenho assumido os meus sonhos e lutado por eles e, a minha alegria a tem motivado também.
        Este é um risco que corremos, o de que nossos pais, tios e irmãos queiram - mesmo inconscientemente -  que realizemos coisas que eles desejaram e não puderam realizar. O que eu aprendi? Que nós precisamos nos conhecer, descobrir nossas habilidades e talentos e ser feliz ao realizá-los, a fim de que não haja espaço para que o outro o ocupe com seus sonhos, como se nós fôssemos um recipiente vazio, pronto para ser completado. Nós já nascemos completos, a beleza é que a vida brinca de revelar. Como a caça ao tesouro, precisamos vasculhar-nos, testar-nos e só assim encontraremos, aos poucos, com paciência e observação todas as nossas riquezas.

domingo, 25 de novembro de 2012

Dois corações

        Hoje eu teria mil assuntos tristes e dramáticos para compartilhar. Foi um final de semana realmente desgastante, mas não foi como das outras vezes, apesar do enredo ser o mesmo dos últimos trinta anos. Álcool, agressividade, internação etc. Desta vez eu estou diferente, escolhi ser diferente, decidi ser diferente. Mas não foi uma decisão de agora, impulsiva, radicalizada, ela veio acontecendo. A vida veio me preparando para este dia. O dia em que na escala hierárquica eu estaria à frente e teria que assinar os papéis. Como me senti pronta! Não houve sentimentos antagônicos como raiva e pena. Apenas a leveza de que estava fazendo o que deveria ser feito. Sem medo ou euforia. Foi como qualquer outra obrigação que eu devesse cumprir.
        Durante as horas que permaneci sentada numa desconfortável cadeira esperando, me peguei relembrando algumas cenas que vivi neste ano, e todas eram tão deliciosamente boas e alegres, que nem percebi o desconforto. Creio que sorri sozinha várias vezes. Eu não conhecia esta sensação. Meu Deus! Como é bom relembrar fatos e encontrar coisas boas, experiências que me encheram o coração de amor e esperança. Eu conhecia o contrário até então. Sabia como era contaminar a alma ao relembrar fatos dolorosos e sofridos. Puxa, mas nada se compara à força das boas lembranças.
        Relembrei os abraços que ganhei, os beijos, os carinhos, os olhares intensos, o passear lado a lado, as palavras doces e risonhas e até as lágrimas de boas emoções. A experiência de saber que se é importante para alguém me sustentou nesta hora difícil e delicada. Meu coração ficou certo do que fazia e minha mente tranquila.
        A força que se formou dentro de mim, que me ajudou a discernir cada passo, cada ato, nasceu da mágica experiência de sentir o coração de outra pessoa bater junto ao meu. As pessoas podem dizer que nos amam, podem escrever cartas, mandar mensagens pelo celular, mas nada, absolutamente nada se compara à experiência de abraçar alguém que se quer bem e sentir seu coração bater aceleradamente junto a si. Não há expressão física maior entre duas pessoas que se gostam. Quando estamos sós e passamos por alguma situação difícil, a lembrança daquele abraço nos faz sentir imensamente mais fortes, pois não sentimos apenas um, mas dois corações em nós.  

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O medo

        Eu era cheia de certezas. Articulava bem as palavras e convencia todos à minha volta. Até convenci minha mãe de que eu deveria sair de casa. O que ninguém sabia é que eu tinha um medo enorme e milhares de dúvidas que eu teimava em esconder, como se ao sabê-las as pessoas me admirassem menos. É, admirassem, pois amada eu não me sentia.
        Saí de casa com a cara e a falsa coragem. Precisaria um livro para narrar todos os sufocos que vivi. Todos os traumas que acumulei e, principalmente, todas as decepções que vivi. Um particularmente me corroía até ontem a noite. Os traumas precisam ter data para serem superados, senão eles vivem por nós.
        Um belo dia fui designada a uma missão assustadora. Eu, pelo fato de saber dirigir recebi a terrível missão de buscar uma aspirante em sua casa. Aspirante era o nome dado às meninas que aspiravam entrar na vida religiosa. Eu deveria recolher suas malas e retirá-la do seio de sua família. Recordo-me que o local não era distante, mas a intensidade do ato parecia de outro mundo.

        Não me lembro se disse algo - naquela época eu tinha medo até de falar - mas me lembro muito bem das expressões de sofrimento nos gritos de sua mãe que se lançava implorando que não se fosse. Até ontem vivi com a certeza de que eu era a pior das pessoas, a mais covarde, incapaz de dizer àquela menina: "Não vá. É tudo ilusão. Uma mentira. Você será mal tratada. Elas te sorrirão e como sereias cantarão docemente até que possam te levar para a região mais profunda e obscura do fundo do mar". Mas eu não podia. Vivia como se estivesse hipnotizada, pelo medo, pela certeza de que eu era fraca por isto fracassava tanto. Na certeza de que minha fé era pequena, por isto passava por tantas provocações. E num profundo gesto de covardia coloquei suas malas no carro e a levei, creio que sem dizer uma única palavra.

        Quantos anos se passaram? Creio que uns vinte. Vinte longos anos de remorso arquivado, guardado na memória e que vez por outra saltava diante de mim e ria assustadoramente, me fazendo sentir-me pequena e acuada.

        Como creio que os traumas têm data para acabar. Este ano a vida me deu de presente um reencontro, breve mas profundo. E eu pude ver a menina meiga, inteligente e educada que sequestrei, transformada numa grande mulher. Que na plenitude de sua vida fez escolhas e as assumiu. Sempre admirei sua inteligência, mas nada conhecia de seus sentimentos. Por isto a dúvida sobre como ela se sentira naquele dia, pairou sobre minha cabeça estes longos anos. E, como um presente, um mimo da vida, na noite de ontem ela me respondeu e me mostrou o lado da história que eu não conhecia; os seus sentimentos mais secretos, as suas dificuldades e angústias.

        Não que as coisas tenham mudado dentro de mim como num passe de mágica, mas sei que agora elas mudarão. Pois o galho morto que pesava sobre o tronco foi podado. Posso dizer que me vi em muitas das suas angústias e é por isto que sei que as superará e encontrará respostas para todas. Passei a admirá-la ainda mais e se antes eu não tive a coragem de pedir-lhe desculpas, o faço agora, porque a única certeza que tenho hoje é de que o medo só pode ser positivo enquanto nos proteger do perigo, do contrário, deverá ser enfrentado antes que nos aprisione.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

As sementes de maracujá

        Eu não me lembro, mas minha irmã tem um registro da infância que inclui maracujá do mato. Sempre que sente saudades comenta do quanto nossa tia lhe levava os tais maracujás, que sob a ótica de seu paladar - se é possível paladar ter ótica - são os maracujás mais doces que existe.
        Procurei pelos tais frutos em várias cidades onde passei, principalmente as interioranas, mas não encontrei as tais mudas. Todos alegaram que está cada vez mais rara. Nem as sementes encontrei. Investi em mudas da espécie amarela e azeda. Quatro mudas que tentam sobreviver aos ataques impiedosos das formigas cortadeiras.
        Para nossa alegria quando passamos uns dias na Ilha da Madeira encontramos pelas ruas carrinhos de frutas e, imaginem, quantidades enormes do maracujá do mato, de casca roxa e docinho. Foi um deslumbre para minha irmã que comprava os maracujás e os comia na rua mesmo, por meio de um furo na casca. Comi um ou outro, realmente são saborosos, mas para mim não têm gosto de infância, de carinho de tia, de travessura para consegui-los.
        Descobrimos que havia um mercado de frutas, flores e pescados na ilha. Claro que o visitamos, desejávamos descobrir se as frutas eram muito diferentes, e lá estavam os maracujás com mais cinco ou seis espécies que não conhecíamos. Comprar mudas seria inviável pois estávamos no início de nossa viagem, elas não resistiriam. Então, entramos numa casa de sementes e minha irmã me fez a pergunta fatal: "Você conseguiria cultivar estas sementes?" Meu primeiro ímpeto foi responder que não, eu não saberia cultivar sementes, só mudas, mas seu desejo era tão intenso que respondi que sim, que não seria muito diferente das mudas.
        Compramos as sementes. E para minha angústia elas permanecem ao meu lado, sobre a escrivaninha, da mesma maneira que vieram. Vez por outra ela pega o saquinho na mão e o olha atentamente e eu me contorço por dentro sem saber o que dizer. Outro dia aleguei que desejava cuidar de perto do seu crescimento e como estou numa fase de muitas atividades ao mesmo tempo, eu poderia deixá-las morrer. Acho que isto a consola. Mas não a mim que percebo cada dia mais que as sementes são muito mais difíceis de cuidar e que qualquer descuido pode prejudicar para sempre seu desenvolvimento. Me dou bem com as mudas, mesmo as mais frágeis, pois já são mais capazes de interagir com quem as cultiva.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O rascunho

        Há dias em que me sinto um rascunho, cheia de anotações e ideias soltas, inconclusa. Sinto-me remendada. Dá um profundo desespero por sentir que a reforma nunca chega ao fim. Que quando penso ter  avançado aparecem novas rachaduras e infiltrações. Me dá uma vontade desesperadora de nascer de novo, começar do zero, reexistir. Como se a minha história nunca tivesse sido escrita.
        É um incômodo ininterrupto que mina as minhas defesas e me provoca a reler-me constantemente. Nem sei mais do que me defendo, se de mim mesma, se de meus fantasmas do passado, se do outro, dos olhares, das críticas, nem sei mais. Nem sei mais o que me move.
        Se eu nascesse de novo e pudesse reescrever a minha história, eu me amaria mais, me lançaria mais, me atreveria mais, me expressaria mais. Talvez assim eu não me perderia no emaranhado das vozes que ressoam em minha mente dizendo-me o que posso e o que não posso fazer; o que devo e o que não devo; o que é permitido e o que não é.
        Ou talvez eu só precise de alguém que me lembre e ajude a virar a página.
  

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O nome

        Eu desejava ouvir meu nome de sua boca. Havia entre nós mais do que uma admiração mútua, havia um elo de vida, talvez de uma vida anterior a esta - não que eu creia em vidas passadas - mas, creio na ancestralidade. Parecia que tínhamos um pedaço da mesma alma que ao se encontrarem se reconheciam e se buscavam.
       Compartilhávamos tempos e espaços comuns em realidades distantes. Eu, na maturidade, vivenciava uma adolescência tardia e me aventurava nas emoções desconexas e exageradas. Ela, na adolescência, vivenciava uma maturidade precoce. Acompanhava-me incansavelmente. Fazíamos de nossas manhãs um ritual de encontro, onde cada gesto contava como a água conta para a flor. As palavras não eram suficientes, não davam conta de expressar tantos pensamentos.
        Nossos olhos eram intensos e profundos, já que uma enxergava na outra o pedaço comum da sua alma. Descobrimos que havíamos sido feitas assim para que não vivêssemos no egoísmo pleno e na autossuficiência. E para que nossas histórias ficassem repletas de sentido e significado.
        Pronunciar seu nome me dava alegria. Fosse como fosse, no diminutivo ou pela metade. Cada forma revelava-me um sentimento que eu descobria aos poucos. Ora fraternal, ora maternal, ora amigável. Nossas conversas em pouco tempo perpassavam as diversas tonalidades possíveis -instrutivas, aconselhadoras, corretivas e triviais - como se a cada tempo assumíssemos papéis diferentes.
         Sua presença era intensa e serena ao mesmo tempo. Aproximava-se e chamava minha atenção sem precisar dizer meu nome, como se ao dizê-lo se desse conta de que eu já não fosse quem seus olhos vira. Então eu respeitava e esperava. Dizer meu nome significaria assumir uma amizade entre dois seres comuns, e tudo o que não queríamos era que nossa amizade fosse comum.
        Aos poucos nossas pétalas caíram e nossos interiores ficaram expostos e eu pude vê-la mais, pude admirá-la mais, pude amá-la mais, porque eu sei que as rosas sempre voltam, e perder suas pétalas é apenas uma maneira de dar espaço às novas. Eu - de meu lado - esperei o tempo em que ela olhando para o que sobrara de mim, pudesse chamar-me pelo nome. E, para minha alegria, muito delicadamente, aconteceu esta tarde.

A casa

        Todos que conheciam me diziam que aquele era um lugar mágico, que eu deveria conhecer e passar uns tempos por lá. Em umas destas ocasiões sem muitos planejamentos, arrumei as malas e fui. De fato, o lugar era lindo, de uma beleza natural intensa. Alguns diziam que ali havia um portal por onde criaturas como duendes vinham durante a noite. Não explicarei aqui as condições sob as quais juravam tê-los visto, mas juraram. Confesso que ria interiormente das histórias, mas não podia negar a energia que fluía do mar, do rio, da mata, das águas das cachoeiras e das montanhas.
        A princípio o sentimento de posse levou-me a ter um pedaço do lugar. Era uma casa pequena, sem acabamento, praticamente abandonada. Quem a via logo me julgava maluca. Quem em sã consciência a compraria? Era difícil explicar que ali eu via um enorme potencial. O fato dela não estar acabada me dava o direito de sonhar, de programar, de planejar e construir um lugar de lazer, de ócio produtivo. Quantas vezes me imaginei ali num belo jardim escrevendo minhas histórias, passeando pela praia deserta no fim de tarde elaborando as ações e sentimentos dos meus personagens. Ah...se não fosse só - o que não seria nada mal - que fosse com um amor, com alguém que compartilhasse o desejo de estar ali e que me amasse a cada anoitecer estrelado. Mas como diz o meu velho amigo em sua canção: "Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade". E o meu sonho era um sonho só.

        Mantive-a o quanto minhas forças puderam aguentar. Melhorei-a aos poucos, sanei alguns defeitos, mas faltava o sentido, faltava o motivo para sonhar. Algo além das obrigações das contas e reformas. Porque as obrigações sem sonhos endurecem o coração e adoecem a alma. Então, sem olhar para trás apaguei a luz e fechei a porta. E foi assim que novamente toda a beleza do lugar se desvendou diante de meus olhos.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A rotina secreta

        Percebi seus olhos sobre meus ombros e não pude deixar de sentir sua respiração suave e profunda. Delicadamente beijou-me a face e se foi, dissipando-se no espaço entre dois mundos. Não era preciso dizer uma única palavra, eu sabia que aquela era sua forma de desejar-me boa noite. Permaneci escrevendo, buscando as palavras que imprimissem na tela branca o significado dos meus sentimentos. Escrevia e deletava, deletava e escrevia.
        Todas as noites era o mesmo ritual. Eu me sentava, girava a poltrona num movimento um tanto desesperado por organizar os afazeres. Ponderava as urgências e me punha a trabalhar. Lia, relia, imprimia, rabiscava. As horas passavam sem que eu percebesse, se não fosse pela fome e a dor nas costas a implorar-me pela pausa, eu me abandonaria na dança nas letras até a exaustão.
        Para que tantas urgências, obrigações e correrias? Não poderia eu apenas deleitar-me na escrita de meus confusos pensamentos? Sentar-me no sofá e embriagar-me de imagens desconexas? Qual a necessidade de tantos papéis sobre a escrivaninha, livros abertos, temas diferentes para discutir e ponderar? Qual a importância disto para o mundo?

        O porta retrato laranja com os seis ao meu redor por vezes me distraía. "Onde estariam os cinco agora?" "Quais caminhos trilhavam?" "Que escolhas e decisões haviam tomado?" De um ou outro lugar surgia alguma breve notícia: "Está terminando a faculdade em outro Estado." "Você não sabe? Se casou com um gringo e foi morar na Europa." Seus medos e inseguranças estariam superados? Desejava que fossem felizes e que o sorriso inocente daquela foto ainda iluminassem seus jovens rostos.

        Desperta de meus devaneios, meus olhos voltavam ao caderno vertical e minhas mãos já cansadas se moviam sem ritmo certo. Ora rápidas pela pressa de não perder a ideia, ora lentas pela incerteza de registrá-la. No dia seguinte, exausta pela noite de trabalho e movendo-me como se meu corpo fosse algo extra, recebia seu abraço matinal: "Dormiu bem?" Respondia-lhe vagarosamente para que cada segundo demorasse mais: "Dormi, mas ainda estou cansada." Sorria-me como quem já esperasse por tal resposta e sem mais delongas ia-se para voltar ao anoitecer.
  

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Linda Flores

        Nem sempre fui Linda Flores, alías, sempre fui várias, muitas e diversas. Angustia-me pensar que alguém possa ser sempre o mesmo, anos a fio, as mesmas ideias, os mesmos valores, as mesmas posturas, os mesmos amores. Linda nasceu a muito tempo e esteve por décadas como uma semente lançada sobre o cimento, até que a mansidão de uma brisa leve a empurrou para um terreno fértil.
        Linda Flores é intensamente mulher, irmã, mãe, amiga e amante. É lua, é desejo, é ternura, é afeto, é tesão. Só quem vê uma flor depois que cai a chuva sabe do que estou falando. Só quem já viu uma cachoeira após uma tempestade pode compreender a força destas palavras.
        Essa nova "eu" quer resgatar o muito do pouco que viveu, que expressou, que amou. Quer comunicar-se, expandir-se, completar-se, lambuzar-se nas diversas formas de amor que a vida lhe trouxer. Seja o amor amigo, o amor irmão, o amor paixão, pois descobriu que não importa a forma, importa é que haja amor. Tudo o mais é conveniência e interesse mesquinho.
        A terra que acolhe a semente adormecida é generosa e abundante. Sim, a palavra mágica é acolhimento. É o ápice do amor - acolher - trazer para si sem nada importar, além do fato de acreditar que ali há uma semente que pode germinar. Assim nasceu Linda Flores, do acolhimento, da ternura de um anjo bom que a soprou em direção da terra boa. Lançou-a nos braços da mãe terra, porque não há maior gesto de acolhimento do que o abraço. Ele está presente entre amigos, pais e filhos, amantes. É a maior expressão do acolher.
        Linda Flores - eu - inteira, sem passado, sem lamentos, sem rancores. Quero perder-me no entrelaçar dos abraços dos amigos e amigas, do amado, da irmã, da mãe terra e da lua. Hoje e sempre. Amém.  

domingo, 28 de outubro de 2012

O ninho

        Ela estava à minha frente esperando para saber se eu representava alguma ameaça. Balançava a cabecinha de um lado a outro e eu feito tonta olhando sem saber aonde ela desejava ir. O pai logo chegou e pousou no galho ao lado, observando tudo ao redor. Eu, extasiada com a coincidência de ver dois pássaros com penas azuis, exatamente da cor da capa do livro que eu lia - o livro de minha amiga escritora Mariza Lima - permanecia boquiaberta por nunca ter visto pássaro assim.
        Creio que a fêmea percebera que eu em minha tontice não a faria mal, então voou até o ninho que estava praticamente a meus pés. Modo de dizer, estava na pilastra onde a corda da rede fora amarrada, meus pés estavam naquela direção. O ninho - uma verdadeira obra de arte - estava cuidadosamente arquitetado entre os galhos da unha de gato, uma trepadeira que cultivo para alegria de meus olhos e desgosto de minha vizinha.
        Fiquei imóvel, não queria assustá-la. Como sempre eu estava com a máquina fotográfica. Gosto de imortalizar algumas cenas enquanto cuido do jardim. Bati uma, duas, dezenas de fotos, mas a distância não permitia que o zoom ficasse nítido. Eu queria que outros olhos vissem aquela cena, porque há cenas que não são para os olhos, são para o coração. A dinâmica do casal para proteger e alimentar os filhotes era digna de ser aprendida pela polícia.

        Pela tarde pude ver o gato da vizinha encima do telhado olhando para a pilastra. Confesso que tive vontade de atirar-lhe uma pedra, mas depois pensei que tendo os filhotes os pais que tinham, não seria necessário que eu interviesse.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O desafio

        Cheguei em casa decidida a encontrar o meu caderno vermelho. Sim eu queria reler a minha adolescência. O caderno vermelho era onde eu registrava meus sentimentos. Coisas de 20, 25 anos atrás. Procurei, procurei e quando já começava a angustiar-me o encontrei. Sentei com as pernas dobradas na cama e folheei as dezenas de páginas amarelas. Não tive paciência para ler tudo, algumas coisas ali já não me diziam respeito. Mas encontrei algo que me fez rir e pensar em por que eu não escrevera mais assim. É a descrição de uma destes dias em que temos prova e deixamos para estudar de última hora...
DESAFIO
"Hoje tenho prova de química, vou sair mais cedo e estudar no ônibus, afinal são quarenta minutos de viagem. Cá estou. O ônibus parou. Calma, calma todos vão subir. Ai! não empurra, será que me sobrará um lugar no cantinho? Não senta aí moça, pensei comigo. Ufa! Sentei.
Como sempre, rotineiramente, o motorista faz seu caminho. Pá! Xii...Rom-Rom... . Passageiros: ficaremos por aqui, o ônibus quebrou. Eu mal saí de minha vila. Nem sequer peguei o caderno; e agora? Vou chegar atrasada e o pior: não estudei.
Lá vem o outro ônibus lotado. Pára e logo o aglomerado se forma. Todos querendo subir ao mesmo tempo. Pareço uma barata tonta, mas e a prova? Eu tinha que confiar no estudo de última hora, que merda. Ai, pera aí! Como está apertado! Fiquei com dó das sardinhas, como aguentam ficar tão apertadas? Ai meu pé! Eu não abria a boca, somente pensava com uma vontade louca de gritar e sair correndo. Um homem gordo se esfregava em mim. Por que você não se encosta em sua santa mãe? Sai, desencosta! Não aperta.
Um banco é desocupado. Empurrões, atropelos, sentaram... E eu aqui em pé, me apertando nesses ferros do banco. Uma curva, não sei onde seguro. Vai tombar, vou morrer, ai... Passou.
Triimmm....
Alguém quer descer, mas como? A porta de entrada está bloqueada. Fecha a porta de trás. Desesperadamente grita a cobradora.
Gentilmente o rapaz segura a minha bolsa. Que alívio! Ela estava tão pesada. Mas que horas são? Tenho prova de química, a matéria é pouca, mas não estudei. Como sou burra!!! Homem, pelo amor de Deus saia de cima de mim. Quero respirar. Um macaco! Não! Espere! Não quero respirar um macaco, mas eu vi um macaco. Na casa a minha frente em plena avenida Dom Pedro I. Ah, prova de química...
Droga! Já são seis horas e cinquenta minutos no relógio da padaria e ainda estou a vinte minutos de meu objetivo.
O ônibus está esvaziando aos poucos, mas não me livro do aperto. É nessas horas que eu queria ter um carro; um excort ou um santana... um fusquinha serviria. Dona Maria deixa eu passar, por favor? Vou descer no próximo. Motorista espera um pouco. Seu idiota olha onde pisa. Sai da frente que eu vou passar. Cobradora cadê o meu troco? Quer que eu segure sua bolsa? Não obrigada, já vou descer. Vai direto motorista, já está cheio. Sai da porta moleque...
Vou enlouquecer. Cheguei. Que alívio; nem sequer olhei para trás. Peguei o caderno enquanto subia a escada. Puxa vida. Eu deveria ter estudado. A porta está fechada, será que o professor já entrou? Lentamente abri a porta. Caramba! Que bom! Ele ainda não veio. Sentei-me logo e já estava diante de meu desafio".
                                                                                                                                 (07/11/1989) 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A concha

        Existe algumas delícias inomináveis que o mundo moderno e as obrigações da vida adulta não nos permite mais. Uma delas é passar a tarde sentada ao ar livre conversando e ouvindo uma deliciosa pessoa - pois algumas pessoas são deliciosas de ouvir - e revivendo fases da própria vida.
        Estava eu ouvindo as peripécias turísticas de minha querida amiga e suas vivências ora divertidas, ora dramáticas, ora profundas e espiritualizadas, um cardápio completo, quando me dei conta de que havia sido inclusa na viagem mesmo sem ter ido. Compartilhou-me uma belíssima experiência à beira-mar com a concha que havia recolhido da areia a meu pedido. Particularmente gosto de trazer conchas das praias e pedrinhas das cachoeiras, mesmo sabendo que não é uma atitude ecologicamente correta. Não sei exatamente explicar o por quê deste gosto, mas creio que minha amiga tenha me dado uma dica.
        É como se a concha ou a pedra contivesse o momento mágico vivido ali, como se ao trazê-la e colocá-la em minha escrivaninha eu o mantivesse para sempre comigo e pudesse revivê-lo a qualquer momento. Minha amiga estava com a concha a algum tempo até que decidira sentar para admirar o mar e, por força daqueles pensamentos que não podemos explicar já que são frutos do espírito, viu-se impulsionada a não trazer-me-a. Contou-me quase como quem recita um poema que se a trouxesse aquele momento seria somente meu, por isto, no desejo de imortalizá-lo, lançou a concha ao mar.
        Estes gestos são delicadezas divinas que nos pegam de surpresa e enchem nosso coração de alegria. Não tive palavras para dizer-lhe o quanto me era importante e significativo escutar tal declaração de amizade. Não sei se ela sabe que o mar sempre foi um lugar de profunda nostalgia para mim em minha adolescência. Nas raras vezes que nossa família viajava à praia, meu maior prazer era andar pela areia e conversar com o mar. O mar trouxe os meus avós para este país. O mar é para mim a metáfora mais completa de Deus. Há um sentimento de pertença que me invade quando estou diante de sua imensidão. Uma saudade de não sei o quê. Graças a minha queridíssima amiga, de agora em diante eu saberei.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Cinco anos

        Dia 17 deste mês eu conversava ao telefone com uma amiga muito querida que não vejo há alguns meses e ela me pedia alguns conselhos amorosos. Isto me angustia deveras, já que no quesito relacionamentos fui dramaticamente reprovada. Até os primeiros vinte minutos da conversa tudo fluía bem, quando de repente, olhando para o canto da tela do computador, me dei conta de que completava cinco anos de divorciada. Por uns instantes perdi o fio da conversa.
        Após algumas elucubrações minha amiga decidiu que eu era melhor conselheira que sua psicóloga, agradeceu-me e desligou toda feliz, ficando eu com as minhas mazelas dançando ao redor de mim. Sentada em minha poltrona giratória senti também o chão girar. Cinco anos se passaram e onde eu estive todo este tempo?
        Recordei-me do pavor que vivi na época, da ansiedade, da angústia, do desespero que me levava a olhar-me no espelho e não enxergar nada além de uma sombra. Eu não tinha identidade. Pela segunda vez eu não tinha identidade. Já havia passado por aquilo na juventude, mas agora era diferente. Era o fracasso acumulado, o segundo título de ex. Primeiro era ex-freira agora ex-esposa. Significava que eu fora e não era mais. Eu era o não-ser.
        Nesta época tornei minha casa meu casulo. Morando sozinha numa casa antiga e destruída iniciei meu processo de reconstrução. Era preciso estar só para encontrar-me já que me havia diluído no marido e na vida exemplar de mulher casada e fiel. Sozinha eu seria obrigada a conviver comigo mesma, me enxergar, me ouvir. E quantas foram as vezes que me ouvi chorar até dormir de cansaço. Quantas vezes me ouvi gritar sobre qual havia sido o meu erro. Quantas vezes me ouvi rir desesperadamente como se tivesse enlouquecido.
        Tudo ao meu redor adquiriu sentido simbólico. A casa e suas infiltrações, rachaduras, bolores, móveis velhos, quintal cheio de mato e nenhuma flor. Passei a reformar a casa ao mesmo tempo que reformava meu psiquismo. Iniciei o cultivo de um jardim para reeducar meus sentimentos. Aos poucos uma nova realidade foi tomando forma, e não faltaram desafios, os quais dariam outra história. Mas criei o hábito de imaginar como as coisas seriam depois de prontas. Coisas comuns, como poder comer num restaurante todos os dias, ter um carro, amar alguém.
        Lutei contra a maldita voz que com o dedo em riste me acusada de ter perdido tempo na vida, e me neguei a pensar que já não pudesse mais realizar meus sonhos. Eu queria meu espírito de volta, aquele da adolescência que me havia levado a buscar a felicidade. Eu queria sentir novamente, mas tinha medo e não sabia como.
        Depois das flores vieram os cachorros. Relutei ao máximo, não queria amar novamente. Sentia-me incapaz de amar. E mesmo com o Lui - meu primeiro cachorro - em casa, eu me sentia estranha. "Por que o trouxera" - me perguntei várias vezes. Hoje eu o amo tanto que chego a sentir dor no peito quando o vejo. Temos mais do que um vínculo de dona e cão, temos um pacto de vida. Nós nos salvamos do abandono.
        Mas os seres humanos ainda estavam longe do meu coração. Mesmo trabalhando diretamente com centenas deles, eu não os queria próximos ao meus sentimentos. Introduzi-me num grupo social interessante, o qual me respeitava e eu tinha com quem sair algumas vezes no ano. Porém, o afeto estava trancado e havia uma terrível formalidade em minhas atitudes. Apesar de desejar o contrário.
        Consegui manter firme minha barreira até que uma criaturinha morena, a mais frágil que se possa imaginar, minou as minhas defesas. Vi-me absurdamente envolta nos confusos sentimentos adolescentes que não me dei o direito de expressar na hora adequada. Quando menos percebi ela já estava instalada em meio aos meus conflitos, sempre mirando-me com ternura e uma intensidade que chega a doer. Ela é a minha menina interior. É como se Deus, por misericórdia de mim, tivesse feito sua alma com alguns elementos curativos da minha para que em algum momento nos encontrássemos.
        Toda a sua ternura derramada em mim como um bálsamo, aos poucos me tem acalmado e, por causa desta calma outros passaram a se sentir bem em minha companhia. E o amor romance que eu havia descartado e temia aconteceu. Porque Deus também pensou neste detalhe e colocou em minha vida alguém capaz de me ajudar a curar as feridas da mulher.
        Estive aí estes cinco anos. Nessa reconstrução e reforma constantes. Ora aparece uma rachadura aqui e concerto, ora aparece ali e remendo. A casa continua antiga, mas adquiriu um espírito jovem e acolhedor.
        Sinto-me mais feliz, porém mais frágil do que antes. Choro por saber que nos separaremos fisicamente em breve e não saber o que fazer com esta nova sensação. Assim como os adolescentes que se formam e se separam dos amigos, sinto-me eu. Uma adolescente prestes a se formar, mas a diferença é que a minha formatura será a formatura do afeto. Quem sabe no próximo ano eu consiga entrar na faculdade e me tornar uma especialista. Tive, sem dúvidas, uma excelente professora que será sempre a minha referência.  

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Sagrado

        Algumas pessoas e situações movem o nosso espírito de um maneira absurda, elas nos lêem de maneira positiva ou negativa. Prefiro tais termos mais exotéricos do que bem e mal. Cansei destes termos já a algum tempo. Bem e mal são instâncias das quais não posso compreender e teria que apenas aceitar, o que nesta fase de minha vida, abro mão completamente.
        Os conceitos de bem e mal estão diretamente ligados à religião e como diz Rubem Alves, se você quiser conhecer a alma de uma pessoa converse com ela sobre religião. O ser humano descreve Deus à sua imagem e semelhança. Uma pessoa dura e vingativa terá o conceito de que Deus castiga, por exemplo. Fico feliz com tal pensamento, pois assim posso conhecer melhor a minha alma.
        Religião não é algo que eu queira mais para a minha vida. Gosto de ser espiritualizada e de certa forma tenho meus rituais próprios. Não rezo orações elaboradas na Idade Média, mas uso as minhas palavras para conversar com o sagrado. Também não gosto muito da palavra Deus.
        Não vou à Igreja porque o sagrado costuma vir até mim em meu jardim. Ele me maravilha no canto do pássaro, nas cores das borboletas, no voo do beija-flor, no toque-toque do pica-pau amarelo, na meiguice do meu cachorro. No sol que aquece o meu corpo, na terra que acaricia meus pés descalços, no suor do meu corpo que libera adrenalina e me dá prazer.
        Gosto de ser mística, mas não ingênua. Gosto de acreditar que tudo está interligado e tudo o que há na natureza está em mim e em mim se manifesta de forma que irradie aos outros. As coincidências servem para que eu compreenda o que estou irradiando naquele momento. Explico-me. Ganhei em menos de uma semana dois presentes ao mesmo tempo diferentes e iguais. Um porta retrato laranja com a foto de um grupo de pessoas muito queridas por mim, onde estamos todos com o que se costuma chamar: sorriso de orelha a orelha. É a nossa alegria imortalizada na imagem. E ganhei também um belíssimo colar laranja. É a minha imagem sendo melhorada. Mas por que laranja?
        Apesar de conhecer um pouco de cromoterapia, assim como com as religiões, tenho minhas ressalvas. Mas, não deixei de pesquisar, nestes sites populares mesmo. Para meu espanto a dinâmica positiva desta cor está vinculada à vontade e poder e a negativa à fadiga e cansaço. Acho que realmente algumas pessoas têm o dom de enxergar a minha alma. E para mim isto também é a manifestação do sagrado.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O talento

        Quando cultivamos um jardim pensamos que de alguma forma nós orientamos a natureza. Plantamos nos espaços que desejamos, organizamos as flores pelas cores que mais gostamos e isto nos dá a sensação de poder, de controle. Pura ilusão, pois nem sempre as plantas se sentem felizes nos lugares em que as plantamos e demoram para se desenvolver ou morrem. Outras que nem sabíamos que estavam ali de repente florescem e alegram os nossos olhos. É uma aventura sentimental um jardim.
        O que as pessoas não sabem é que só cultiva um jardim quem tem um demônio dentro de si. Não é o demônio das igrejas, é o mesmo demônio que atormentava Sócrates. Aquele que o questionava o tempo todo, que o obrigava a pensar, a refletir, a aprofundar questões incômodas. Pois é, meu demônio cultucou-me nesta semana obrigando-me a pensar no conceito de talento.
        Palavra tão usual e até banal. "Você tem talento para tal coisa." "É preciso ter talento para fazer isto". "Aquela pessoa não tem talento algum". E assim seguem os comentários que como ondas de rádio permanecem no espaço psicológico de alguns de nós. Mas o que é talento?
        O critério popular diz que talento é um dom natural. Defendem que a pessoa nasce com ele. Pode ser um talento para música, teatro, pintura etc. Chega às raias do mitológico. Parece algo pronto e acabado que define a vida e o sucesso das pessoas. Mas sejamos um pouco realistas. Será que não estão confusos? Será que na realidade, por questões biológicas, educacionais e sociológicas o que temos são habilidades?
        Rotular uma pessoa de talentosa como algo que já veio pronto e anexo à sua alma é muito perigoso, pois se em algum momento ela falhar, significará que seu talento não fora real? Desaparecera? E quais são as certezas sobre o talento de cada pessoa? Se uma criança brinca com carrinhos significa que ela tem talento para ser corredora de fórmula 1?
        Nossas habilidades são possibilidades, assim como as sementes, assim como os brotos. São oportunidades de nos tornarmos competentes em algo. Uma vez, na disciplina de Literatura Brasileira estudamos um poema por várias aulas, até que um aluno se cansou e disse para a professora. Ela calmamente pediu para que o aluno tivesse paciência pois o poeta havia levado dez anos para compor aquele poema. Fiquei pasma e então compreendi que as grandes obras são dez por cento inspiração e noventa por cento transpiração.
        Tudo é uma convergência de fatores para a planta nascer: o tipo de solo, a época do ano, a quantidade de água, de adubo, de poda e a qualidade da semente, além das formigas que poderão devorá-la ainda pequenas. Assim somos nós réles mortais. Temos as nossas habilidades, as quais serão desenvolvidas ou não, dependendo dos mais diversos fatores: educacional, sociológico, econômico, religioso, emocional e etc.
        Para cultivar o jardim é preciso ter o coração aberto para todas as possibilidades. É preciso releitura constante e muita observação, pois a qualquer momento será preciso mudar alguma planta de lugar para que ela possa desenvolver-se, por mais que eu a desejasse naquele lugar.

domingo, 7 de outubro de 2012

A piscada

        Qual é o valor de uma piscada? Absolutamente nada - diriam uns. A piscada é um ato involuntário necessário à lubrificação dos olhos - diriam outros. Pois eu digo e defendo que a piscada é o maior dos gestos de cumplicidade.
        Estamos numa balada com centenas de pessoas e de repente paramos no olhar de alguém e este alguém nos pisca. Qual a sensação? Com certeza é a de exclusividade. Receber uma piscada de alguém no meio da multidão. Significa que alguém nos viu e gostou do que viu.
        Numa discussão sem fim. De repente queremos nos meter para ajudar um amigo, mas ele nos pisca. Quer dizer-nos que não vale a pena nosso esforço, que deixemos, que não nos metamos, pois no fundo ele nem está levando a sério aquela situação.
        Quando um amigo conta uma mentira para outro na nossa frente e nos pisca. É um pedido de socorro, de "não me desminta, por favor". Assim como numa bronca. Se alguém nos dá uma bronca e nos pisca, sabemos que aquela bronca é uma mentirinha, é um faz de conta, tem outro objetivo.
        É por isto que a piscada se torna muito mais do que um movimento involuntário das pálpebras. Não neguemos sua involuntariedade e necessidade fisiológica de lubrificação dos olhos. Pois com os olhos bem lubrificados, podemos ver uma piscada voluntária em meio à multidão. Ah...se isso acontece, a cumplicidade está selada, não se pode mais voltar atrás. Não há testemunhas, só o teu coração e o de quem te piscou, e isto já basta para te condenar àquela deliciosa cumplicidade amiga.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O livro

        Ouvir dizer que as pessoas mais intelectualizadas fazem menos sexo do que as outras. Confesso que por um tempo acreditei em tal teoria, porém, isto não é verdade. As pessoas intelectualizadas fazem muito mais sexo do que as outras. A questão está no conceito de sexo. Se sexo for visto apenas como algo genitalizado, então poderá ser verdadeira esta afirmação. Mas se sexo for um ato de conquista, enlace afetivo, amor e prazer...então, com certeza os intelectualizados praticam mais sexo.
        A leitura nada mais é do que uma relação de amor. Entramos numa livraria como se entrássemos numa balada. Ali encontramos livros de todos os tipos, tamanhos, assuntos e preços. Passeamos pelas estantes lançando olhares intensos, desejosos e por vezes furtivos. Uma capa nos chama a atenção, uma ilustração, um título ou até mesmo um valor. É a paquera.
        Depois tomamos coragem e nos aproximamos. Sentimos seu cheiro. Como é prazeroso o cheiro de livro novo. Odor faz parte da conquista, há perfumes especializados nisto. Com um pouco de receio o tocamos, pegamos na mão, acariciamos a capa, ainda mais de for em relevo. São as primeiras carícias.
        Se até aquele momento foi do nosso agrado, então abrimos o livro, com cuidado para não danificá-lo, pois ainda não é nosso. Atentamente lemos sua orelha. Sim a orelha, uma das nossas zonas mais eróticas. Ali o conquistador testa as reações do conquistado. No livro também. As informações básicas estão escritas ali.
        Havendo reciprocidade - o livro também nos escolhe - o levamos para casa, para a nossa intimidade. Nos aventuramos a introduzir uma conversa. Lemos a introdução e de maneira muito natural, passamos à história. Ali rimos, choramos, gememos de dor e de prazer. Literalmente na cama, porque ler na cama é mais prazeroso. Fica tarde, sabemos que no dia seguinte teremos trabalho, mas desejamos ir até o fim, até o ápice do prazer, saber como a história acaba. Nem sempre terminamos no clímax que esperávamos ou desejávamos, mas mesmo assim dizemos que valeu a pena, que foi bom.
        Quem não passa por este processo violenta e estupra a leitura. Então ela não dá prazer. É apenas uma conveniência, uma obrigação, um hábito obrigatório para uma prova ou teste, portanto, não será sexo e muito menos amor.

domingo, 30 de setembro de 2012

Possibilidades

        Amanhã. Quantos amanhãs ainda teremos? O suficiente para dar conta de todos os compromissos que o mundo moderno nos impõe? Quanto a mim não sei dizer. Talvez eu consiga realizar alguns, se eu tiver amanhã. Nossa prepotência às vezes é ceifada pelo suspiro final. Longe de mim pensar na morte. Mas quero pensar no hoje e ter para o amanhã pensamentos de possibilidades e não de certezas.
        Possivelmente me levantarei às cinco da manhã e irei trabalhar. Possivelmente chegarei bem no trabalho e realizarei o que possivelmente for o melhor de mim. Possivelmente terei colegas de trabalho com os quais não comungo as ideias. Possivelmente terei alunos que me chatearão e eu os chatearei. Possivelmente passarei alguma contrariedade e contrariarei alguém.
        Sim. Possivelmente, pois certezas são ilusões. Certezas são desejos petrificados que quando não se realizam nos deixam arrasados, infelizes e desconsolados.  A possibilidade é a abertura para o diferente, para o complementar.
        Cansei-me de desejar certezas e respostas que nunca vem. Cansei-me simplesmente. Quando nos abrimos às possibilidades, podemos viver mais, sentir mais. É possível que amanhã chova ou faça sol. É possível que eu encontre alguém que não vejo a muito tempo. É possível que eu faça um caminho novo para o trabalho. É possível que eu ria ou chore. É possível...
        Sempre desejei ter certezas: certeza de ser amada, certeza da carreira profissional, certeza do que comprar, certeza da certeza. No entanto a vida sempre me obrigou a saltar no escuro, a crer e arriscar. Acho que é a forma que a vida tem de me dizer que minha tendência é a petrificação das ideias, por isto me obriga a mudar constantemente, me obriga a abrir-me para as possibilidades.
        Que venham as possíveis realizações ou não. Se é assim que deve ser a minha vida. Amém.