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quinta-feira, 28 de março de 2013

O monge e o palito

        Sobraram três palitos na velha caixa de fósforos, todos os outros já haviam abraçado seus destinos. Alguns se conheceram mais, outros nem tanto. Como nenhum dos três sabia exatamente a hora em que iriam, resolveram gastar o tempo se conhecendo.
 
        - Olá, sou Paliti.
 
        - Oi, sou Palitê.
 
        - E eu sou Palitá.
 
        E começaram uma interessante conversa a respeito de suas origens, das árvores de onde vieram, dos campos onde viveram quando ainda faziam parte da natureza e dos sonhos que tinham.
 
        - Eu vim de uma árvore velha e frondosa - disse Paliti. Quando fecho os olhos ainda posso sentir o carinho do vento. Era tão lindo o nascer do sol, o barulho da água correndo no rio, o canto dos pássaros. Eu adorava a explosão de cores na primavera. Eu gostaria de acender uma artilharia de fogos de artifício, só pra ver pela última vez uma explosão de cores.
 
        Palitê e Palitá se emocionaram com a narrativa de Paliti. Pensaram que tinham histórias diferentes e que também desejavam compartilhá-las.
 
        - Eu não vim de uma árvore velha e frondosa - disse Palitê - Eu vim de uma árvore pequena e frágil que mal aguentava as rajadas de vento. Aliás, o vento sempre me assustava e eu achava o sol pouco carinhoso, ele queimava as minhas folhas e os insetos me incomodavam. Alguns pássaros eram muito pesados para os meus galhos e eu sempre tinha a sensação de que a qualquer momento me quebraria. Eu gostaria de acender uma fogueira bem alta de onde fosse possível ouvir o estalar do fogo.
 
        Paliti e Palitá se olharam e nada desejaram comentar, apenas sorriram para Palitê um sorriso acolhedor.
 
        - E você Palitá? - perguntou Paliti - qual é a tua história?
 
        - A minha história é diferente - começou Palitá - não vivi sempre no mesmo lugar. Eu sou parte de uma árvore transplantada quando ainda era pequena, que cresceu numa terra fértil, mas longe de sua terra de origem. Eu fui feliz, me diverti muito com o balançar do vento, eu sentia cócegas. Gostava de receber os raios solares e brincar de sombra com minhas folhas. Os pássaros me encantavam com seus ninhos, era uma festa quando nasciam os filhotes. Os insetos para mim eram visitas, eu não me importava em recebê-los. Até que um dia as coisas foram mudando e as diversões já não me satisfaziam tanto. Faltava alguma coisa, mas eu não sabia o quê.
 
        - E você descobriu o que era? - perguntou Palitê.
 
        - Na verdade não.
 
        - Acho que você começou a sentir falta da tua terra natal - comentou Paliti.
 
        - Não creio, lá não era bom para viver.
 
        - Você se lembra de como era? - insistiu Palitê.
 
       - Lembro-me um pouco, mas as outras árvores me disseram que muitas coisas ruins haviam acontecido naquelas terras quando eu ainda era uma semente.
 
        Paliti e Palitê se olharam e compreenderam que a mesma dúvida pairava sobre suas cabeças. Então, delicadamente Paliti arriscou:
 
        - Acho que esta falta que você sentia era a falta das tuas origens, da tua terra materna. Você nunca desejou voltar?
 
        - Não queria voltar para um lugar ruim, eu era feliz onde estava.
 
        - Toda situação tem dois lados e toda história duas versões, Palitá. Você conhecia a versão de quando fazia parte de uma árvore pequena que entendia e pensava como árvore pequena, mas ela cresceu, poderia pensar e entender como árvore grande. Quem sabe, ao conhecer as duas versões você pudesse compreender o que faltava. E agora, o que você deseja acender? - concluiu Palitê.
 
        - Eu gostaria de acender  as velas de um templo.
 
        E sobre seus sonhos ainda conversaram, até que uma mão levou Paliti e Palitê, deixando que Palitá caisse no chão e fosse levado pelo vento à terras ainda mais distantes. Um monge pobre e em peregrinação, caminhando de cabeça baixa encontrou o palito que faltava para reacender sua vela e continuar sua caminhada rumo à terras conhecidas.
 
 
 
 

terça-feira, 26 de março de 2013

As sapatilhas

        Sentei-me em minha cadeira giratória, peguei o primeiro par, calcei, movimentei os pés para cima, para baixo, olhei, olhei. Depois experimentei o outro par, andei de um lado, do outro e lá estava eu aos quarenta anos calçando pela primeira vez sapatilhas de ballet. Alguma frustração por nunca haver praticado a dança? Não, pelo contrário. Sempre cultivei verdadeira aversão pelo figurino, pelos movimentos e pela fragilidade aparente das bailarinas.
 
        Percebi que o caminho que escolhi foi, sem dúvidas, o mais difícil. Preferi chuteiras à sapatilhas, preferi jogos à bonecas, preferi bicicleta à casinha, preferi Gata Borralheira à Cinderela.  Certamente eu haveria tido menos conflitos familiares e sociais se tivesse usado mais tamancos, maquiagens e me casado aos vinte.
 
        Ao contrário de hoje teria uma casa barulhenta, um marido gordo e seria a rainha do lar. Poderia exigir atenção, não me preocupar com as contas, frequentar a manicure todas as semanas, discutir com as professoras dos meus filhos, descobrir que meu marido tem uma amante e fazer de conta que não sabia de nada. Flertar com o verdureiro para me sentir mais sexy e comer massa todos os domingos. Mas não foi este o caminho que escolhi.
 
        Nunca fui chamada de princesa, nem de meu bem. Não carregaram as minhas sacolas, não abriram as portas do carro para mim, não se lançaram aos meus pés pedindo para ficar e nem ameaçaram se matar caso eu não voltasse. E minha terapeuta diz que qualquer outra pessoa que tivesse passado pelas coisas que passei teria pirado.
 
        Senti-me bem com as sapatilhas, me pareceram apenas sapatos, nada mais. Com certeza não me tornarei uma bailarina, no entanto, descobrirei partes de mim ainda inexploradas e, quem sabe, descobrirei alguém que se escondeu para não perder a sua essência.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

segunda-feira, 25 de março de 2013

A escova

        Cheguei em casa e fui escovar os dentes, pois havia almoçado na rua. Em meio à minha higiene bucal uma dúvida acelerou meu coração: "Esta é a minha escova de dentes?". Retirei-a da boca, e comecei analisá-la, era cor de rosa. Olhei para o suporte de escovas e a outra, azul, estava ali, imóvel, sem me responder à dúvida cruel.
 
        Nada vinha à minha cabeça que esclarecesse qual das duas era a minha escova. Como pode ser isso? Como algo tão nosso, tão pessoal pode ser esquecido desta forma? Não é uma escova nova. Pensei na angústia da velhice. Fiquei com medo, parei de escovar os dentes e lavei bem a escova caso aquela não fosse a minha. Uma tristeza pairou sobre mim.
 
        O que havia em minha cabeça que apagara tal informação? Por mais que eu tentasse não conseguia saber. Pensei que eu devesse esquecer outras coisas, deveria esquecer coisas que me fazem mal, que magoam, que machucam. Eu havia tido uma discussão com minha superiora pela manhã e o fato ocupava minha mente de uma maneira mais do que necessária.
 
        A imagem da discussão se repetia, se repetia, e eu tentava entender. Aquela pessoa, naquele momento, representava todas as minhas perdas, representava o abuso de poder, o abuso da minha boa vontade, o abuso da minha postura de responsabilidade. Ela assumia a forma de um mostro devorador. Era a personificação dos que brincam com a minha boa fé. E eu não vou mais aceitar isto, pensava.
 
        Vou enterrá-la, desaparecer com sua presença, dispensá-la de meu dia a dia, proteger-me, vou vestir a capa da invisibilidade. Algumas pessoas nos fazem muito mal e saber distanciar-se é saber preservar-se.
 
        Tive que telefonar para minha irmã e perguntar qual era a minha escova de dentes: "É a azul, a minha é a rosa" - respondeu.

domingo, 24 de março de 2013

A loucura

        Como fazemos para explicar o que não sabemos? Lá fora a chuva cai, aqui dentro cobertores, comida e tudo o que eu preciso, mas o peito se afoga e eu não sei o que fazer, não sei o que pensar. "Reaja" - me dizem. É engraçado, ouvimos esta fala em filmes de guerra, de catástrofes, de tragédias. Somos nós programados para vivermos somente se há um leão atrás de nós?
 
        Será que só encontramos forças para lutar pela felicidade quando estamos em situação de perigo? Quando algo muito grave e difícil aconteceu em nossas vidas? Parece que comigo só funciona assim. Eu não quero que nada grave me aconteça, quero que minhas forças voltem, que meu ânimo se reacenda, que meus olhos brilhem e que meu coração bata alegremente de novo.
 
        Sinto-me enfeitiçada, com os olhos pesados como se um gigante me houvesse pisoteado. Tenho um profundo medo de enlouquecer, de perder a razão. No entanto, a razão não me tem protegido da dor. Ela explica, mas não cura. Ela aponta as falhas, mas não corrige. A razão paralisa, imobiliza, seca.
 
        Talvez eu precise exatamente enlouquecer e fazer as coisas que nunca fiz, dizer o que nunca tive coragem de dizer. Talvez a loucura seja a minha salvação.

sábado, 23 de março de 2013

A dádiva

        Amigas são personalidades vitais, essenciais, absurdamente necessárias. Nesta fase maluca em que me encontro, na qual não sei o que são emoções e o que são manifestações hormonais, minha semana passou sob a dança desvairada de Pandora.
 
        Uma amiga querida, sim, porque há amigas que não são queridas, são apenas amigas, resolveu me ajudar e me ensinou uma técnica libertadora. O que ela não imaginava é que sua técnica em mãos de uma pessoa desesperada como eu, serviria para abrir a caixa de Pandora. Tanto ela como eu nos assustamos, apesar de que eu tenho a sensação de que dentro em breve daremos boas risadas da mesma situação.
 
        Enfim, parte do meu tratamento, indicado por ela, não havia sido concluido, eu ainda precisava passar por mais algumas etapas, exatamente as que ela me indicou no e-mail. Com certo receio de repetir a cena, mesmo me sentindo um pouco melhor hoje, escutei orientação por orientação prescrita, apenas a última não me agradou muito, sem preconceitos.
 
        A terapia consistia em realizar um ritual libertador acompanhado de algumas músicas, a seu ver, próprias para o ritual. No dia em que resolvi realizá-lo, usei uma música de meu gosto, pois não conseguia abrir seus arquivos. Hoje finalmente consegui ouvir as músicas que me mandou, meu computador estava sem o arquivo necessário para rodar videos, depois de várias tentativas consegui baixá-lo. Não fiz exatamente como me orientou, não dancei, não pulei e nem gritei, apesar das músicas que escolheu provocarem tais reações.
 
        Hoje, o que realmente me tocou foi conscientizar-me de que ela escolheu cada música para mim, pensando em mim. E isto vale muito, muito mais do que qualquer ritual. Ter alguém que pense em nós e saber disto é uma dádiva.
 
 

sexta-feira, 22 de março de 2013

O amanhã

        Quando eu me separei e voltei a morar na casa de minha infância, destruida pelo tempo e pelos maus tratos dos inquilinos, eu costumava assistir a filmes que me ajudavam a encontrar sentido e forças para recomeçar. Lembro-me que o filme mais significativo para mim foi Sob o sol de toscana. De alguma forma eu incorporei aquela personagem que após ver seu casamento destruido e perdido seus bens para o ex-marido, vai morar em outro país e inicía uma nova vida numa casa velha que reforma.
 
        Seus sonhos se realizam, não exatamente no formato que ela pensou, mas se realizam. A metáfora da reforma da casa é muito forte e eu a tomei para mim. Também de alguma forma meus sonhos e projetos para esta casa se realizaram. A grande questão é que o filme não mostrou como sua vida continuou após a concretização de seus sonhos e, de alguma forma, eu também não sei como deve ser a minha, ou como eu devo me sentir.
 
        Creio que eu esteja em busca do amanhã, da renovação e da resignificação de tudo o que conquistei. É como a história dos contos de fadas onde termina no "felizes para sempre", e eles não mostram como se vive feliz para sempre.
 
        Esta semana estou novamente na fase dos filmes e mais do que assisti-los para buscar referências, tenho observado que eles me distraem, me obrigam a parar, a sair da rotina desenfreada de obrigações que se acumulam em meu cotidiano. Uma querida amiga chegou a me dizer que eu devo ter sido escrava em outra vida. Nem preciso crer em vidas passadas, a minha tataravó era escrava. Creio nas memórias de nosso DNA, na herança genética psíquica.
 
        Mas hoje não quero falar de memórias genéticas ou passado. Assisti a um filme infantil, estes de desenho animado. Uma família do tempo das cavernas cuja filha não gosta de viver na escuridão e o pai sempre a ensina a ter medo e se proteger na caverna. Ela quer seguir a luz, quer sair, quer ver a claridade, quer chegar no amanhã.
 
        Meus pais me deram um nome cujo significado tem a ver com luz e creio que minha maior luta sempre foi por sair da escuridão. Acontece que para reconhecer a luz é preciso que haja trevas e talvez este esteja sendo um tempo de passagem por alguma trilha escura, por uma caverna, por uma passagem secreta que me levará ao amanhã.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Por quês

        Eu queria rever o filme Tomates verdes fritos, procurei-o na estante, preparei a pipoca, o suco e o cobertor. Alguns filmes costumam alimentar a minha alma e este é um deles. Eu sabia a história quase decor, mas queria rever as cenas, os rostos, as expressões. É a história de algumas mulheres em momentos diferentes da história que lutam pela felicidade, que enfrentam situações adversas, que choram, que riem e que descobrem suas forças e fraquezas.
 
        No momento auge do filme, onde acontece um julgamento, o dvd parou e nada o fez voltar a passar. Aquele maldito disquinho estava terrivelmente riscado e me deixou sedenta das palavras de amor e gratidão de uma das personagens principais. Por quê? Eu e minha mania dos por quês.
 
        O interessante desta história é que dependendo da época da vida em que você assiste, a identificação é com uma personagem diferente. Hoje me identifiquei com a de meia idade que passa por uma crise de falta de sentido em sua vida de casada. Eu não estou casada, mas as coisas estão mudando, eu sinto. Para ela os hormônios eram um fator importante, talvez seja o momento de eu começar a pensar nesta questão.
 
        Minha vida é boa. Tenho emprego garantido, tenho casa própria, carro, cachorros e algumas pessoas que me amam, pelo menos eu acho que amam, e no entanto um sentimento estranho me acompanha desde alguns dias. Ele vem do nada e domina meu corpo e mente. Não é contínuo, mas é intenso e luto para não me deixar dominar. Tenho percebido um peso sobre os olhos, mas ao mesmo tempo minha visão se modificou, vejo mais paisagens do que antes, olho mais amplamente para o espaço do que fixamente. Algo está mudando, algo a mais do que as marcas de envelhecimento que observo em meu pescoço. É difícil aceitar que o tempo esteja iniciando o processo de decadência.
 
        Eu preferiria que fossem os hormônios, assim eu poderia encontrar uma resposta mais eficaz e deixaria meus por quês repousarem em paz.
 
 
 
 

quarta-feira, 20 de março de 2013

Dia da Felicidade

        Dia Internacional da Felicidade, declarado pela ONU. Não estou para ironias, mas é engraçado ter um dia dedicado à felicidade. Se fosse há alguns anos atrás eu diria que sou ou estou infeliz, o que não é o caso neste momento. Eu sou feliz só tenho me sentido extremamente angustiada, com vontade convulsiva de chorar, de sair correndo e só parar quando estiver exausta.
 
        Não é fácil explicar tais sentimentos, por mais que eu tente, as palavras me traem. Alguns dias são traiçoeiros, eles nos pegam desprevenidos e nos derrubam. É o jogo da vida, é a dança dos sentimentos.
 
        Ontem foi dia de São José e aniversário de vida de meu pai, se ele fosse vivo teria completado 62 anos. Nossa diferença de idade era pouca. Fui um impulso e uma imprudência de sua juventude. Ele não viveu o bastante para me dizer se havia se arrependido ou não, mas a sua morte deixou claro o quanto sua família lhe era um peso. Se ele estivesse vivo minha vida seria diferente? É certo que sim, só não sei dizer se teria sido melhor.
 
        Veio-me à mente a cena de minha mãe escondendo seu último bolo de aniversário no forno quando ele completou trinta anos. Lembrei-me dela me pedir para não lhe contar nada. Ontem as paredes falavam, ou melhor, gritavam e eu revi cenas que desejava esquecer, cenas de brutalidade, de violência, de maus tratos. Eu tentei curar as paredes desta casa, as reformei, mas elas insistem em cair.
 
        Estou tão cansada de lutar com a minha história, com o meu passado que quando penso que ele está repousando, percebo que ele resolveu mudar de lado. Quero ir e ao mesmo tempo ficar. Ao ir tenho a sensação de novo fracasso, de perder o tempo de vida que investi aqui. Ao ficar tenho a sensação de que nunca darei conta das verdadeiras reformas que esta casa precisa.
 
        Uma imensa sensação de impotência passeia por minha alma e eu não sei direito o que fazer, só me resta esperar e rezar para que eu tenha discernimento de perceber o que o tempo fará.
 

segunda-feira, 18 de março de 2013

Tão

        Estou tão! Tão sem saber o que fazer, tão sem rumo, tão sem direção, tão sem vontade, tão sem resposta, tão cansada. A possibilidade de uma nova mudança se aproxima e eu não sei o que fazer. Não sei se quero mudar, começar de novo, estou tão cansada.
 
        Quantas coisas me motivavam, me mantinham viva e intensa. Minha separação, o recomeço, a casa destruida, a falta de companhia. E hoje? Por que não sinto a motivação que pensei que sentiria ao ter tudo o que desejava? Por que me sinto tão cansada?
 
        Meu jardim floresceu, os amigos voltaram, um novo amor despontou. E mesmo assim me sinto tão incompleta, tão sedenta. Devo deixar tudo e recomeçar ou desta vez não é recomeço, mas continuidade? Não sei avaliar. Será que desta vez será melhor? Serei mais feliz? Me sentirei menos cansada? Pensei que com o passar dos anos as respostas viessem mais fáceis, mas elas não vêm.
 
        Por que eu sempre sinto que não estou fazendo o bastante? Por que para todos os lados que olho vejo uma obrigação, algo que deve ser feito? Tenho me sentido tão impotente. Tudo parece tão grande e sem fim.
 
        É tudo tão...
       
 
 
 
 
 

sábado, 16 de março de 2013

Sozinha

        Tínhamos um mês de namoro quando ele colocou aquele cd no carro. Eu não estava acostumada a escutar Caetano Veloso, mas aquela música era bonita. Eu tinha a sensação de que ele ao ouvi-la se referia a mim, que quando não estávamos juntos ele sentia a minha falta, se sentia sozinho.
 
        Eu, de minha parte, gostava da música mas não tinha a certeza de que o queria colado em mim. Ter alguém ao meu lado a todo momento me assustava. E se um dia eu estivesse de saca cheia? E se um dia eu estivesse irritada? E se um dia não sentisse mais alegria em sua companhia? Eu gostava de sentir saudades, de me preparar para o encontro, de olhar no relógio para ver se ele estava atrasado.
 
        Por anos o cd tocou no rádio do carro, por anos desejei ser feliz e não me sentir sozinha em sua companhia. Ele ali, colado em mim e tão distante, tão ausente, tão longe. E eu desejando que me deixasse solta para que sentisse saudades.
 
        O tempo nos mostrou duas verdades: "Quando a gente ama é claro que a gente cuida" e "Fala que me ama só que é da boca pra fora". Nosso suposto amor acabou e carrego o medo de um novo encontro, de um novo desejo de colar. Espero que o tempo me ensine a sobreviver aos meus defeitos, às minhas rabugices, às minhas incertezas e manias para que quem colar em mim também sobreviva.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Sexta-feira

        Sentada na mesa de uma padaria tenho vontade de cantar: "Tem dias que a gente se sente como quem já partiu ou morreu...", o cansaço da sexta-feira só é superado se temos em perspectiva um bom fim de semana, desde que o seu carro não resolva quebrar pela terceira vez no mesmo lugar e neste caso nem posso culpar o mecânico, provavelmente é defeito de fabricação.
 
        Comprei meu carro há três anos e todos os anos o reservatório de água do radiador racha fazendo a água vazar e o motor quase fundir. Como um objeto tão importante pode ser tão menosprezado e feito de plástico de má qualidade? Parece-me que querem justamente que o motor funda para que compremos outro carro. É a maldita sociedade consumista.
 
        Esta situação me faz pensar que preciso ficar atenta ao meu reservatório para não fundir o meu motor. Meu reservatório precisa mais do que água, precisa de afeto, de compreensão, de mais qualidade de vida. Não que eu considere minha vida má, mas a questão da qualidade hoje em dia está em voltar às raízes, ter uma vida menos corrida, menos estressante, e como fazer isto trabalhando tão longe do serviço e administrando os ânimos e desânimos de tantos? Ainda não sei, só sei que enquanto tomo um suco de uva e espero o conserto do carro, penso.
 
        Quando eu buscava a peça para o mecânico trocar precisei deixar meu carro dois quarteirões longe da loja por falta de lugar para estacionar na rua. Acabei deixando-o em frente à casa de minha avó. Quando voltei o portão estava aberto e uma mulher que desconheço o estava fechando. Engraçado, se eu tentasse entrar ela com certeza me teria barrado. Logo eu que morei três ou quatro vezes ali em fases diferentes da minha vida. Olhei a casa por detrás do muro e nada senti, nem saudades e nem pesar. Foi como se eu nunca estivesse entrado ali.
 
        Entrei no carro e sai pensando se eu havia endurecido, mas compreendi que o espaço físico nada é. Na verdade nossos espaços são interiores e a memória nos ajuda a mantê-los vivos. Os espaços só têm sentido pelas pessoas que ali encontramos e pelas experiências que com elas vivemos. Quando as pessoas que amamos estão ali, então há vida, há pulso e o nosso coração pulsa diferente somente ao passar pelo lugar. Mas se eles não mais estão, tudo fica sem sentido.
 
        Quando penso naquela casa vejo-a cheia de gente, de vozes altas, de gritos com as crianças. Sinto o cheiro do café com leite que minha avó fazia questão de colocar no copo para mim, coado para não entrar a nata, ouço o bater de bola nas paredes e vejo o jardim gramado e florido.

        Logo após sua partida retirei de seu jardim as poucas flores que sobraram e as levei para casa. O aspecto abandonado de sua residência me fez pensar em como as coisas se deterioram, acabam, perdem a graça. Mas hoje descobri que nada se perdeu, tudo está vivo dentro de mim, das minhas lembranças, das minhas memórias, marcadas na minha pele e na minha alma.  
 
        "Mais alguma coisa, senhora?", "Hã? me desculpe, estava distraida, quero um pedaço de pizza de quatro queijos, tem?", "Tem sim."

quarta-feira, 13 de março de 2013

O papa

        Francisco I é o novo papa, Francisco é o pai dos pobres. Quando eu poderia imaginar que viveria para ver um evento tão único, a eleição de um papa latino-americano após a renúncia de um papa alemão. Isto seiscentos anos após a última renúncia. Confesso que sua nacionalidade me desagrada um pouco, nada contra argentinos, e também nada a favor. Questões histórico-culturais-futebolísticas, as quais esperamos não se extendam ao papado. Só faltava o papa torcer para a Argentina sendo a Copa no Brasil!
 
        Tive vontade de compartilhar algumas charges do facebook, engraçadinhas, uma com a ilustração de nosso personagem caipira o Chico Bento com a frase: "Entra o Chico, sai o Bento". Não é maldosa, apenas engraçadinha. Aliás, adoro piadas religiosas, de preferência inocentes. A prudência me impediu de compartilhar esta e outras charges, já que opção religiosa é algo que decidi não mais discutir.
 
        Penso que se eu ainda estivesse neste meio, estaria hoje tomando uma cerveja para comemorar, ou melhor pensando, acho que estaria numa missa. Comemorar a vez da América Latina, sonhar em que a Igreja dos Pobres finalmente chegou ao poder, o que me faz lembrar da canção: "Somos gente nova vivendo a união, somos povo, semente da nova nação".
 
        Terá sido esta escolha inspiração do Espírito Santo? Nestes detalhes prefiro nem tocar para não perder o pouco que me resta de fé e ter que acreditar que o Espírito Santo não conhecia os povos latino-americanos até dez anos atrás, por isto sempre escolheu papas europeus. Imagino-o conversando com Deus: "Senhor, preciso lhe contar uma coisa, descobri um povinho numa parte do mundo, sua grande maioria crê na gente, acredita? Vou descer e dar uma sopradinha na velharada e ver se eles se sensibilizam e dividem um pouco o poder. O que acha?" Deus, na sua infinita prudência, responde: "Acho interessante, Espírito Santo, vamos ver o que eles farão."
 
        Se não foi o Espírito Santo então foi sacanagem e das grandes. Como a Europa está quebrada, agradar os povos por ela colonizados é interessante. Imagine as discussões dos cardeais: "Vamos escolher um latino porque assim eles que são o celeiro do mundo não nos negarão comida, nem água, nem trabalho". "Você está certo, mas é melhor escolher um argentino, porque assim os brasileiros vão querer ter mais fiéis só pra mostrar pra eles que são melhores até no número de fiéis, quem sabe o Pelé se anima e vira diácono permanente e o Maradona fecha sua igreja e trás seus fiéis pra cá".
 
        Ironias à parte, não dá mais para levá-los a sério. Comovo-me com a fé e a determinação dos fiéis que mesmo em meio a tantas crenças ainda resistem, mesmo ainda assediados moral e sexualmente não abandonam sua igreja. Eu voltarei para ela quando as mulheres puderem ser ordenadas sacerdotisas, quando os divorciados não forem mais proibidos de comungar, quando os homossexuais forem abençoados em seu amor, quando os padres puderem escolher entre se casar e assumir o celibato. Para quem está vivendo um momento único, não custa sonhar.

terça-feira, 12 de março de 2013

Boca aberta

        "Boooommmm dia, amigos ouvintes da rádio Boca Aberta! Estamos comemorando hoje um ano no ar! O programa "Manda que eu detono" está turbinado. Serão dois e-mails lidos e comentados. Mas antes um agradecimento aos nossos patrocinadores. Sabão em pó Curió, limpa a tua roupa e o teu fio. Fotos Amélia revela teu filme. Restaurante indiano Boiadeiro e sexy shopping Brinquedinhos da Terceira Idade.
 
        Hoje teremos dois e-mails de duas adolescentes da mesma escola. Duas loiras, altas, bonitas e sensuais. Duas garotas-maravilha do terceiro ano do ensino médio. Vamos começar pela garota de olhos azuis. A garota "X": "Olá Crisolina! Adoro o teu programa, escuto quase todos os dias. Decidi escrever porque estou muito feliz. Meu sonho é trabalhar na televisão e este ano consegui realizá-lo, me tornei assistente de palco de um programa com dois palhaços. Eu brinco com as crianças, coloco o microfone em suas bocas para elas falarem e fico o tempo todo sorrindo. Estou muito feliz! Só uma coisa não está boa. Eu estou no terceiro ano do ensino médio, tenho 17 anos e não poderei frequentar as aulas das sextas-feiras, porque as gravações acontecem nesse dia pela manhã. A escola vai me ajudar porque entende que esta é a oportunidade da minha vida. Os professores sabem que sou boa aluna e vão me ajudar preparando trabalhos à parte pra mim. Só uma veio me dizer que eu deveria colocar os estudos na frente do trabalho, mas eu acho que é inveja do meu sucesso. O que você acha?"
 
        Garota "X" antes de comentar o teu e-mail vamos escutar o e-mail da garota de olhos castanhos, a garota "Y": "Bom dia Crisolina, meu nome é "Y" e quero agradecer pelo bom programa e pela oportunidade de ter o meu e-mail lido. Eu sou filha única de família pobre e minha mãe está divorciada. Meu pai é uma pessoa complicada, de difícil relacionamento, digamos que é um homem imaturo. Minha mãe é professora e está sem aulas, passamos por um momento difícil. Eu desejo muito ser médica e tenho me esforçado para ser uma excelente aluna. Nossa escola oferece um cursinho preparatório para o vestibular, é gratuito. Eu frequento as aulas normais pela manhã e o cursinho a noite, tenho estado muito cansada. Aos sábados trabalho em buffet infantil, adoro crianças, e ganho R$ 30,00 por noite, mas tenho percebido que fico muito cansada para estudar. Alguns professores acham que passar em medicina é muito difícil, não me dizem diretamente, mas eu percebo que eles não confiam que eu seja capaz. Só uma professora pouco popular me diz para seguir avante, lutar pelos sonhos, hoje ela me aconselhou a parar de trabalhar e focar nos estudos. O que eu faço?"
 
        Estão lidos, amigos ouvintes, agora é só você ligar e comentar. "Alô!" "Alô, Crisolina!!! Eu te love! Quero mandar um recado pra garota "X": você é linda! Vai em frente, é isso aí, trabalhar na televisão é o sonho de muitas garotas, você conseguiu! Pra que aprender matemática, química e biologia se você quer trabalhar na televisão? A escola tem mesmo que te liberar, não fazem mais nada do que a obrigação. Escola é um porre. E pra você garota "Y" ser médica é muito difícil, quase ninguém entra na universidade pública e se você é pobre não vai ter como pagar. Mas tenta, vale a pena tentar, não é mesmo? A gente tem que correr atrás. É isso aí, bota pra detonar!"
 
        Este foi o comentário de nossa ouvinte "Z" da região do Beleléu. Agora, nosso último comentário da ouvinte "W" da região do Pópopó: "Oi "W"! "Oi, Criso. Quero mandar um abraço para as duas garotas e parabenizá-las pela coragem de expôr seus dilemas. Vou falar para as duas ao mesmo tempo. Acho que antes de uma pessoa se definir em uma profissão deve se perguntar qual é o tempo de vida últil da profissão. Quanto tempo uma atendente de palco infantil terá o rosto jovial que agrade e dê audiência à emissora? Quantos anos um médico leva para se preparar e servir ao próximo? Será que vale a pena nesse país? Quem aparece na televisão tem a autoestima mais trabalhada do que quem é pobre e quer ser médico? Ou quem quer ser médico é porque se acha mais importante socialmente do que quem trabalha na televisão? A escola compreende que você "X" precise faltar para gravar e ela também entende você "Y" quando está cansada na segunda-feira depois de trabalhar no buffet?
 
        Muito bem! Obrigada cara ouvinte, essa foi profunda! E terminamos por aqui mais um Boca Aberta. Amanhã voltaremos com o e-mail de um jovem homossexual que não sabe se conta ou não para seus pais. Até amanhã neste mesmo horário. Fiquem agora com as notícias da manhã.   
 
 
 
 

segunda-feira, 11 de março de 2013

O ridículo

        Ela desligou a telefone chateada. Por que dissera aquilo? - se perguntava. Últimamente dera para proferir aos outros frases que ela mesma detestava. Mas dizer a uma amiga era sinal de que alguma coisa estava errada. Estaria na crise da meia idade? Precisava pensar, rever seus conceitos, ou aqueles que adotara para si.
 
        Decidiu fazer algo que gostava, mexer com tintas. Mas as tintas não queriam sair do pincel, por mais de se esforçasse a única coisa que conseguiu foi se sujar. Então decidiu lavar a louça. Plof e lá se foi o copo preferido de sua irmã. Um nó na garganta lhe incomodava. Abriu a geladeira e decidiu  pegar uma cerveja, mesmo sem gostar. Destrancou o portão para que os cachorros saissem e se deitou na rede cheirando a mofo.
 
        Uma mão extendida se revezava entre quatro cabeças caninas recém tosadas enquanto a outra mantinha a lata de cerveja que gole a gole se extinguia debaixo de um céu azul límpido após uma tarde chuvosa.
 
        Estava em sua velha casa, sentada no canto do sofá ao lado das plumas coloridas no vaso de barro quando chegou uma menina de uns doze anos. Pela mochila vinha da escola. Colocou suas coisas na estante e foi para o quarto voltando depois de poucos minutos transformada numa espécie de atriz cômica. Usava roupas coloridas que exaltavam o ridículo. Seu rosto estava exageradamente pintado e nas mãos uma folha de caderno com algumas linhas.
 
        "Mãe! Vem escutar o poema do japonês chamado Ku" - gritou. Uma jovem mulher de olhar triste apareceu na cena, se sentou sorrindo numa das poltronas e esperou que a menina começasse a declamar. Suas caretas exaltavam ainda mais o duplo sentido da história e a mãe ria deixando que lágrimas lhe escorressem pela face. "Onde você aprendeu isto? Foi na escola é?" Não havia correção na frase, era apenas uma forma de dizer obrigada por tentar me alegrar. E sem nunca se sentir ridícula a menina buscava uma maneira de fazer sua mãe sorrir e se esquecer de sua dor.
 
        O tempo passou e nada do que ela fizesse era suficiente. Deixou de declamar seus poemas, deixou de se vestir exageradamente, se esqueceu das piadas, não quis mais aprender a tocar violão. Passou a lavar, passar, cozinhar, cuidar dos irmãos e administrar a casa. Mas nada disso foi suficiente para ver alegria no rosto de sua mãe.
 
        Os anos se sucederam num piscar de olhos e a tristeza que habitava a alma doente da jovem senhora, alcançou a sua também. Por vezes tentava resgatar a habilidade em fazer o outro rir, mas as obrigações e o peso do ridículo lhe apagavam as chamas.
 
        Algo gelado lhe despertou, era a cerveja que se derramara sobre si. Levantou-se e decidiu que caminhar lhe seria mais últil. Resolveu andar por entre as flores de seu jardim, viçosas pela chuva da tarde. Uma pedra pontuda lhe feriu o dedão e se agachando para observar a agressora de perto, se deparou com uma caixa descoberta pela enxurrada.
 
        Retirou-a com cuidado e dentro encontrou um antigo diário. Estava molhado mas ainda era possível ler, bastava aquecê-lo com o secador. As folhas ficaram enrrugadas e seu aspecto se tornou ainda mais sigiloso, já que algumas letras haviam passado de uma folha à outra pela umidade.
 
        Era seu diário da adolescência e além de falar sobre suas angústias, registrava seus anseios. "Eu desejo encontrar alguém que eu possa amar e que me faça sorrir, que compreenda meus medos e que eu não me sinta ridícula ao seu lado". Coisas exageradas de adolescente, sonhos e desejos com aquela caixa enterrados e esquecidos.
 
        As frases que ela agora dizia a outros com o dedo em riste estavam no capítulo das revoltas: "Você pensa que é filha de quem para sonhar com isto? Todo adolescente quer fazer teatro um dia. Vai fazer psicologia para vender caneta na praia? Você não pode ver sangue que passa mal. Você não consegue decorar as notas? Você já deu comida para os teus irmãos? Pare com isso ou vai me deixar louca. Estou cansada, não quero sair com você. Vou sair com meus amigos, eu tenho direito, eu sou nova. Você não quer que eu seja feliz. Você vai acabar me matando". Pegava-se agora repetindo algumas delas, e o pior, às pessoas queridas. Por quê?
 
        Decidiu que ofereceria o diário em holocausto aos deuses, nem se importaria a qual. Queimá-lo seria um gesto de libertação, de oferenda pela passagem de uma era. Sim, talvez fosse realmente a crise da meia idade, a passagem para uma nova era, onde seus sonhos adormecidos eram despertados pelo beijo inocente de uma criança que agora enchia sua face de alegria. O novo despertando o velho, o novo e o velho de mãos dadas rumo à concretização de nobres ideais sem se importarem com o ridículo da vida.

(E quem não se considera incompleto e insuficiente, não deseja aquilo cuja falta não pode notar.) Platão, Banquete, 203b

domingo, 10 de março de 2013

O colchão

        "Preciso ir embora". "Não vá, fica comigo." Abraçou-me fazendo com que nossos corpos suados quase se fundissem. Eu não sabia o que dizer, não estava acostumada a que me pedissem para ficar. "Eu quero cuidar de você". Olhei-o com ternura. Alguém deseja cuidar de mim, pensei. Tudo o que eu pedira à vida era alguém que cuidasse de mim. "Por que você me olha assim?" "Assim como?" - perguntei. Eu não sabia como responder sobre meu olhar. Nem sempre consigo dizer com palavras o que sinto, a admiração, o amor e a ternura que me comovem, então eu olho, olho a pessoa amada no desejo de que meu olhar expresse o que não sai da garganta.
 
        Eu desejava ficar, mas não podia, não agora, não hoje. Tenho medo, medo da dor, da desilusão, da incerteza. "Se eu ficar você vai enjoar logo" - brinquei nervosamente. "Eu vivo com você tranquilamente, eu sei que sim". Como ele pode ter tanta certeza? Minhas cicatrizes são muitas. Eu não aguentaria uma nova rejeição. Pensei que para ele não seria fácil dizer aquilo, já que seu sofrer também era intenso.
 
        Nos abraçávamos cada vez mais e suas mãos em minhas costas me acalmavam, me tranquilizavam. Aquilo era tudo o que eu sempre desejara e agora que acontecia, por que eu não gritava de alegria dizendo sim, aceitando como uma adolescente. Porque os traumas da vida nos ensinam a ser prudentes e sensatos. Mergulhados nas profundezas de nossos olhos conversamos sobre nossos medos, anseios, projetos e realidade, sem medir o tempo, sem atropelar as palavras. Não houve juras, nem declarações emotivas de amor e paixão. Houve ternura, cuidado e carinho. E o suor de nossos corpos nus e sem defesas selou nosso compromisso de melhorar, de vencer nossas mazelas, de nos prepararmos para compartilhar mais do que um colchão.
 
 

sábado, 9 de março de 2013

O rosto

        Ao levantar o rosto me deparei com uma mulher de meia idade. O rosto mais arredondado e cheio, marcas de expressão, pálpebras caídas e meio sorriso. O espelho não mentia, muitos anos se passaram desde quando eu me media pelo que alcançava ver. Primeiro o rosto, depois os ombros e finalmente os peitos. Eu crescera.
 
        Por onde passearam estes anos de minha vida? Queria poder entrar num trem panorâmico e passar por algumas estações para rever-me. Assistir de longe minha atuação no cenário da vida. Queria poder escutar as respostas que dei para as situações mais difíceis e perceber se o mais importante foi a palavra ou tom da voz.
 
        Eu a amava tanto e queria saber exatamente onde foi que tudo se quebrou. Talvez nem tenha sido de uma vez, mas aos poucos. Recordo que estávamos deitadas no sofá verde em nossa humilde cozinha e eu, aos cinco anos, a beijava intensamente passando as mãos sobre seus cabelos dizendo: "Mãe, você é tão bonita". Ela sorrindo me perguntou: "Quando eu estiver velhinha você vai me abraçar e beijar assim?" Não respondi. Eu sabia que não, mas não tive coragem de lhe dizer.
 
        Não sei como eu sabia e tal pensamento por muito tempo me acompanhou. Seria falta de amor de minha parte? Não, não pode ser. Um amor tão grande não muda da noite para o dia e nem se apaga pelo correr do relógio biológico. Um amor tão grande só acaba se for abandonado, pouco a pouco, assim como se abandona uma planta sem água e sem adubo.
 
        Ela não encontrou forças para cultivá-lo e ainda exigiu o que não me havia dado e eu não tive como devolver. Nossa pobre relação se baseia na cobrança. Na cobrança de um tempo que não volta mais, na cobrança de um amor que não se cultivou, de um afeto não partilhado. Tenho pena de minha mãe por haver disperdiçado sua chance de ser mais feliz, mais amada, mais querida.
 
        O espelho me diz que tudo o que sou vem do pouco de cada um que cruzou a minha história, de pedaços de amores - como os pedaços de retalho da minha colcha - que foram deixados estampados na minha pele e no meu peito. Meus valores e meu caráter foi esculpido pelos tropeços da vida e a ternura que eu pensara não ter mais, tem se mostrado de mansinho, pouco a pouco. Quem sabe um dia o espelho me fará novamente sorrir para o rosto que eu contemplava aos cinco anos.
 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Dia da Mulher

        Dia internacional da mulher. Será mesmo? O que temos para comemorar? Conquistas? Quais? Esta data me parece uma afronta. Deveria ser na verdade um momento de homenagem às operárias que morreram por reivindicarem direitos básicos de trabalho e repensar nosso papel, nossa identidade.
 
        Parece-me tudo muito hipócrita uma vez que as próprias mulheres conseguiram impôr-se ainda mais trabalho, mais responsabilidades. E os homens cada vez mais se aproveitam disto. Temos que ser mulheres-homens. E eu estou tão definitivamente cansada disso tudo.
 
        Outro dia uma colega me dizia que sua neta lhe perguntara se podia aprender a andar de skate e ela lhe disse: "Você pode fazer tudo o que um homem faz, e ainda melhor, mas só não pode deixar de ser uma princesa". Na época eu não compreendi bem, mas creio que hoje sei exatamente o que ela quis ensinar à sua neta.
 
        Ser uma princesa não é ser mimada ou ter um aspecto de bobinha, indefesa e amedrontada. Ser princesa significa assumir o poder, acreditar em sua própria força e estimar-se como tal. Ter consciência de seu papel no reino e se preparar para o reinado. As meninas educadas como princesas são diferenciadas em sua estima, são mais confiantes em suas habilidades e se acham merecedoras de respeito e amor.
 
        Cresci tendo horror à princesas e menosprezava sua imagem geralmente ridicularizada, mas hoje, atuando entre tantas, percebo o quão educativo é para a auto estima de uma menina ser educada como uma princesa. Prepará-la para a batalha se for preciso, para a administração, para o enfrentamento e as grandes responsabilidades. Se a mulher não assumir seu posto de princesa, o homem não assumirá o seu de príncipe.
 
        É isto o que temos visto, homens cada vez mais infantilizados, pouco responsáveis, medrosos e inseguros, incapazes de defender uma mulher. Direitos iguais em nenhum momento significa igualdade de gênero, somos seres diferentes, complementares talvez. Direitos devem estar acima de qualquer circunstâncias de gênero, raça ou credo. Eu não tenho que me tornar masculina para ser mais respeitada. O problema é que só descobri isto agora e não sei o quão tarde está para mudar.  
 
 

quinta-feira, 7 de março de 2013

A colcha e o contrato

        Faz uma semana que eu queria escrever sobre minha colcha de retalhos e acontece algo que me leva a outro tema. Eu queria contar que sempre tive vontade de ter uma colcha de retalhos feita por mim. E que há uns quinze dias minha mãe apareceu aqui em casa com dois sacos enormes de retalhos de pano de sofá, de diversas cores e tamanhos, mas hoje aconteceu algo que me desviou novamente do assunto.
 
        Eu estava no trabalho, prestes a sair, quando tocou o celular e era meu tio. Ele queria que eu passasse na casa de uma tia que não vejo há muito tempo para pegar um contrato. Coisas de herança familiar. Aliás, esta palavra é engraçada para mim pois a única coisa que herdei até hoje foi o gênio ruim da família do meu pai, como costuma dizer minha avó materna. Enfim, ele queria que eu pegasse o contrato e o levasse para reconhecer firma de minha assinatura. Eu disse que iria.
 
        Se não fosse por este contratempo eu poderia contar que dos panos de retalho que minha mãe trouxe eu cortei sessenta e quatro retângulos do tamanho de uma folha de sulfite e os separei em montes de oito, com as estampas que eu queria, enquanto minha mãe os costurava. Mas o contrato tem mais urgência.
 
        Parei diante daquela casa onde em quarenta anos eu só havia entrado umas cinco ou seis vezes e em nenhuma delas me serviram sequer um copo de água. Apertei a campainha e já estava preparada para receber o documento e ir embora quando ela me convidou para entrar. "Não tia, obrigada, tenho que ir e sei que você tem compromisso na igreja daqui a pouco." "Entra, vamos", insistiu. Este repentino convite me roubou a atenção e se não fosse por isto eu poderia contar que na noite em que cortei os retalhos eu também aprendi a costurar - um pouquinho - mas aprendi e costurei várias peças.
 
        Entrei e nos sentamos no sofá. "Aí era o lugarzinho preferido do teu tio". Senti-me um pouco estranha. Teria eu herdado até os gostos da família do meu pai? E então ela destrambelhou a falar, um assunto engatado no outro, sem pausa, sem que eu conseguisse interagir com a voz, me restava apenas algumas leves expressões faciais que eu teimava em fazer para não começar a divagar.

        Ela é hipocondríaca e me falou de seu problema no joelho, da tireóide, da ferida no estômago, das pedras no rim e dos desmaios que agora estão mais frequentes. Pensei que poderia estar em casa jantando e depois me preparando para contar que a colcha ficou pronta no dia seguinte e eu decidi que só a colocaria na cama após pintar e reorganizar o meu quarto.

        Seus suspirosos comentários sobre o amor que ela tinha por meu tio me fazia pensar se eram reais ou apenas projeção de uma vida absurdamente resignada, onde mulher só serve para mesa e cama. Achei melhor acreditar já que por diversas vezes seus olhos se encheram de lágrimas. Que engraçado, minha história com esta mulher é como a minha colcha, só tenho alguns pedaços de poucas histórias: uma passagem de ano, um Natal, aniversário da avó, coisas sem muita significância, se é que existe tal palavra.

        Eu queria ir embora, minha cabeça rodopiava e eu já nem sabia mais do que ela falava. Foi quando a campainha tocou e imediatamente me levantei dizendo: "Vou embora, tia. Aproveito que você vai até o portão". "Não vá!", me disse quase implorando. Senti pena, pensei que ela se sentia sozinha sendo agora viúva, mas eu seria apenas um breve consolo. Então ela me disse toda contente: "Eu me lembro de quando você era pequenininha". Meu coração bateu mais forte, pois eu ouviria pela primeira vez uma história sobre mim de um ponto de vista totalmente novo. Ela continou: "Me lembro que você não gostava muito de andar, então sua mãe fazia assim - imitou um chute de bola - e dizia: "Anda filha de um burro!"

        Eu realmente preferiria contar que quase terminei de reformar o quarto, só falta pintar a janela, o que farei tão logo, para que eu possa me debruçar e ver os pássaros que habitam a árvore logo à frente, buscando novos horizontes e um futuro, já que passado, seja qual for o ângulo, sempre se confirma. Quanto à minha colcha, está linda sobre minha cama e esta semana minha terapeuta me deixou como lição de casa me deitar sobre ela.


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 6 de março de 2013

O trem

        Na noite passada sonhei que eu havia viajado e que quando cheguei na casa onde eu me hospedaria, descobri que ela ficava dentro de um trem. De repente, enquanto eu conversava com a pessoa responsável o trem começou a andar. "A casa está se movimentando", disse assustada. "Sim, estamos dentro de um trem", me respondeu naturalmente. "Mas como vou fazer para visitar os lugares que desejo?", "Não se preocupe, amanhã cedo ele volta, você só tem que ficar atenta ao último horário de saída". Depois o sonho tomou outro rumo.
 
        Será nossa vida é um cenário dentro de um trem que todos os dias parece nos levar a lugares distantes, mas no fundo nos traz sempre para o mesmo lugar? Será que a graça da vida está em descer em estações diferentes até chegar na última? Não sei, talvez esta seja apenas a minha realidade, a minha vivência. Eu já voltei várias vezes para o mesmo lugar e recomecei a viagem.
 
        Creio que agora estou na parte da viagem em que não se vê nada além de paisagem, sem saber como e quando será o lugar da próxima parada. Eu fui muito feliz na estação de onde sai. Confesso que foi uma experiência um tanto tumultuada, ambigua, mas não posso deixar de admitir que foi intensa e cheia de sentido. Na estação de onde sai encontrei quem me ajudasse a reviver e fechar um ciclo de vida que estava aberto e perdido no tempo. Talvez seja por isto que chegou a hora de partir para a próxima estação. Talvez seja por isto que alguns sentimentos como uma espécie de despedida esteja ao lado de outro sentimento: o de um grande vazio.
 
        Não que eu tenha me despedido ou perdido a quem me ajudara, ao pé da letra, apenas não estamos mais no mesmo vagão. Ficou a cumplicidade da viagem, dos segredos compartilhados, das angústias e alegrias vividas, dos medos sofridos e da imensa ternura derramada.
 
        Eu quero acreditar que meu trem me levará à novas terras e que este novo ciclo que se inicia será de realizações e conquistas adultas. O trem vai e volta, assim posso retornar à antiga estação para um reencontro e saber de suas boas novas e compartilhar as minhas. Por enquanto eu só tenho a paisagem para compartilhar.     
 
 
 
 

terça-feira, 5 de março de 2013

A síndrome

        Voltava do trabalho pensando em ligar para minha fada madrinha e lhe pedir alguns conselhos. Conselhos não, eu queria que ela me dissesse o que mais tenho de incômodo. Como sei que fada madrinha é educada, eu sabia que ela me diria a verdade, e melhor, de uma maneira educada e gentil.
 
        "Você está muito rabugenta!" Foi o que ela me disse, sem dó nem piedade. Talvez com certa piedade. Ela nem usou o verbo ser. Eu agradeci, pois mesmo sem ainda lhe haver perguntado, ela com suas antenas radioativas ligadas, me respondeu. Creio que seja porque minha rabugice está transbordando pelos poros.
 
        Decidi suar um pouco o corpo sozinha, já que meu namorado não estava comigo, e subi numa escada bem alta com uma tesoura de aparar plantas. A trepadeira já havia feito a curva do muro e incomodava os olhos da vizinha. Cortei, cortei e enquanto cortava, vários pensamentos ocupavam minha mente em ritmo alucinante. "Por que não fazer isto ou aquilo? Isso não, é melhor aquilo. Por que me sinto assim e não assado? O que eu quero da minha vida? Nossa, esses pensamentos são adolescentes, mas eu já não cresci?" E assim foram, um atropelando o outro.
 
        A neblina e a garoa chegaram logo, densas e intensas, então me lembrei que não lhe havia recomendado levar o guarda-chuva para sua aula de encantamentos. Fadas madrinhas também ficam gripadas.
 
        Consegui cortar metade do que precisava e intuitivamente guardei minhas ferramentas, tempo suficiente para cair uma chuvarada. Decidi que deveria me entregar, a que deus mesmo? Qual é o deus ou deusa dos afazeres domésticos? É mesmo! Eu havia me esquecido, não há um deus ou deusa para afazeres domésticos, pois foi satanás quem os intentou. Eu teria que passar minha noite debruçada numa tábua de passar, pois bem, assim seja.
 
        Mesmo que eu me entregue às obrigações satânicas como lavar, passar, cozinhar e limpar a casa, minha cabeça permanece no limbo, passeando pelos recônditos mofados da minha consciência. Havendo a esperança de um dia eu alcançar o céu.
 
        Estava eu pensando sobre minhas mazelas quando finalmente percebi que sou portadora de uma síndrome que começou na adolescência: a síndrome Raúl Seixas. Sim, esta síndrome existe, só não foi ainda catalogada pelos psiquiatras e psicólogos, mas vou sugerir à minha terapeuta que elabore a teoria. Aliás, acho que os pais não deveriam deixar seus filhos escutá-lo, já que uma vez adquirida a síndrome ela se torna crônica.
 
 
 
      

segunda-feira, 4 de março de 2013

Sócrates e a menina

        Sócrates passeava pelos jardins da acrópole quando viu uma menina seguindo-o. Caminhou por um tempo tentando ignorá-la, até que se cansou e voltando-se bruscamente ralhou: "O que você quer menina? Pare de me seguir". A menina, que não era de se deixar abalar, respondeu: "Mestre, eu quero teus ensinamentos". Considerando seu desejo uma afronta, respondeu: "Eu não perco tempo com ninfetas, meus ensinamentos são para os mancebos. Mulheres foram feitas para servir ao templo e não para as ideias". E dando-lhe as costas continuou sua caminhada.
 
        A menina percebeu que seu ídolo era também um homem de sua época, preconceituoso e prepotente. Mesmo assim, seu desejo de saber a impulsionou e o alcançou correndo. Caminhando a seu lado lhe perguntou: "Mestre, as mulheres só podem servir ao templo? E às artes?" Sem parar de caminhar e sem nem sequer olhá-la respondeu: "As artes são para os sábios e sensíveis. Aos filhos de Dionísio e Apolo lhes foram dado o dom da representação e a nenhuma mulher". "Mas as mulheres representam muito bem, veja quando estão com seus maridos". "As mulheres não representam, elas são ardilosas e enganadoras". "Mas o teatro não é senão a arte do engano?"
 
        Sentindo-se ofendido o velho mestre parou e voltando-se para a menina com o dedo em riste proferiu suas mais duras palavras: "O teatro não é a arte do engano. Os atores são possuidos pelo espírito de Dionísio e Apolo. Entregam-se às suas invocações e expressão seus desejos mais intensos". Baixando os olhos e com a voz um pouco embargada a menina contestou: "Eu vi a representação dos filhos de Dionísio e Apolo, camuflada. O que vi foram pessoas entregues aos seus vícios e instintos. Isto não pode ser representação. Os desejos dos deuses não pode ser superior a nossa consciência".
 
        Percebendo que a menina não desistiria de suas ideias, Sócrates sentou-se sobre uma pedra à sombra de uma velha figueira e mais calmamente perguntou: "O que você deseja, menina?" Expressando alegria sentou-se sobre a grama a seus pés e disse emocionada: "Eu quero representar". "Mulheres não representam, mas se por algum motivo enlouquecedor, lhe fosse permitido o que você desejaria representar?" Olhando para o céu e invocando seus sonhos mais secretos, disse: "Eu representaria tudo o que fizesse sentido à existência de alguém". "Mas assim você faria o que desejasse sem importar-se com a inspiração dos deuses". "Eu me importaria sim, mas sem assumir seus vícios. Eu construiria os personagens e não o contrário, pois se eu me perder só poderei representar um papel todas às vezes. E mantendo a minha sobriedade e consciência eu poderei ser várias".
 
        Sócrates admirou-se da inteligência a astúcia da menina e pensou que ela realmente tivesse razão, pois os atores que conhecia haviam se tornado pessoas envaidecidas e mesmo fora da arena viviam como se fossem semi-deuses. Possuiam estranhas maneiras e não raras vezes temiam as pessoas comuns. "Vou te apresentar na arena menina, e veremos o que fará, sabendo que a você não será permitido entregar-se aos rituais de dionísio, nem vinho, nem ópio, nada te será dado e vejamos como atuará". Levantando-se disposta e feliz, respondeu: "É tudo o que eu desejo".

domingo, 3 de março de 2013

Laço fraterno

        "Finge que tá mortaaaa", disse o personagem zumbi do terceiro filme que assistimos. O cinema todo riu e nós também. Já estávamos na segunda pipoca e suco, além de termos almoçado no shopping. Eu havia aceitado seu convite para uma maratona de filmes, já que tínhamos direito à meia entrada iríamos aproveitar e assitir logo três.
 
        O primeiro foi sobre dois irmãos que caçavam bruxas, o segundo sobre uma bruxa que ao fazer dezesseis anos precisava decidir de que lado ficar, da luz ou das trevas; e, o terceiro de zumbi. Praticamente nada muito interessante para mim, mas o fato de haver sido convidada por minha irmã na frente de meu namorado envaideceu-me. Ela queria a minha companhia e isto me alegrou bastante.
 
        Não saíamos juntas sozinhas há um bom tempo e partindo dela o convite, isto significava que ela realmente queria sair comigo, pois companhia nunca lhe falta. Chegamos a comprar copos promocionais, como as crianças, mas os esquecemos no balcão ao pagar o estacionamento.
 
        Alguns irmãos são amigos natos, por vezes companheiros para toda a vida. Alguns apenas co-existem na mesma família e outros, infelizmente, se tornam nossos inimigos. Não temos como saber. A vida nos mostra. Nossas travessuras juntos, o compartilhar de roupas, a preocupação na doença, o desespero nas tragédias, nos mostram o quanto nossos irmãos nos amam ou não, mesmo que estejamos longe.
 
        Estou contente por nosso passeio, apesar de não manifestarmos nosso afeto intensamente, somos cúmplices na alma, e sei, pois seus amigos já me contaram, que ela me respeita como a uma mãe. São as compensações que a vida me dá pela ausência do que eu sempre tive medo de ter.
 
        Ser a irmã mais velha não é nada fácil. Temos mais responsabilidades, nos sentimos mais cobrados, queremos cuidar dos outros ou nos pedem para cuidá-los. Nos tornamos uma espécie de espelho e nossos pais são mais severos e inseguros conosco. Mesmo assim torço para que todos possam ter uma irmã ou um irmão, mesmo que não seja de sangue, pois o laço que mais se mantém durante nossas vidas é o laço fraterno.

sexta-feira, 1 de março de 2013

A centésima

        A centésima publicação. Uma ainda não tive coragem de publicar por ser essencialmente agressiva. Mesmo que somente eu leia minhas erupções raivosas, considerarei esta a centésima publicação, pois tudo concorre para que este dia seja um marco.
 
        Há menos de um ano uma vontade imensa de manejar as palavras me invadiu e a coragem humilde e simples encontrou lugar entre minhas mãos, mente e coração. Recomecei o que há tempos deixara passar e a marca desta nova etapa foram as alegrias vividas. Antes o que me motivava a escrever eram fatos tristes e angustiantes, os quais eu não sabia administrar. O papel assumia a forma de terapeuta e as teclas da máquina de escrever gemiam com meus golpes. Era uma catarse.
 
        Poucas foram as publicações angustiadas e desesperadas e por isto agradeço, pois uma nova fase se iniciou. Ainda não sei exatamente o quanto caminhei, mas sei que não estou mais no mesmo ponto, na mesma estrada. Há pouco menos de um ano e tantos textos. Pequenos e humildes, mas sinceros e desejosos de profundidade e sentido.
 
        Dois grandes fatos marcam esta centésima publicação: o voo de duas águias. A águia-menina que virou mulher e a águia-mulher que deseja passar pelo processo de renovação. São águias do meu céu, que habitam a minha existência, ora passiva ora conflitiva. Eu lhes digo: voem o mais alto que puderem, porque eu quero voar também e não quero estar sozinha.
 
        Voe águia-menina, o mais alto que conseguir e sem ferir tua natureza. Apure teu olhar sobre as situações e abra bem tuas asas. Mantenha a envergadura necessária para não se quebrar e continue dobrando os joelhos para que teu impulso seja cada vez mais forte e certeiro.
 
        Voe águia-mulher, o quanto você ainda conseguir, para que eu possa voar também e sem remorsos seguir meu caminho.