Ela desligou a telefone chateada. Por que dissera aquilo? - se perguntava. Últimamente dera para proferir aos outros frases que ela mesma detestava. Mas dizer a uma amiga era sinal de que alguma coisa estava errada. Estaria na crise da meia idade? Precisava pensar, rever seus conceitos, ou aqueles que adotara para si.
Decidiu fazer algo que gostava, mexer com tintas. Mas as tintas não queriam sair do pincel, por mais de se esforçasse a única coisa que conseguiu foi se sujar. Então decidiu lavar a louça. Plof e lá se foi o copo preferido de sua irmã. Um nó na garganta lhe incomodava. Abriu a geladeira e decidiu pegar uma cerveja, mesmo sem gostar. Destrancou o portão para que os cachorros saissem e se deitou na rede cheirando a mofo.
Uma mão extendida se revezava entre quatro cabeças caninas recém tosadas enquanto a outra mantinha a lata de cerveja que gole a gole se extinguia debaixo de um céu azul límpido após uma tarde chuvosa.
Estava em sua velha casa, sentada no canto do sofá ao lado das plumas coloridas no vaso de barro quando chegou uma menina de uns doze anos. Pela mochila vinha da escola. Colocou suas coisas na estante e foi para o quarto voltando depois de poucos minutos transformada numa espécie de atriz cômica. Usava roupas coloridas que exaltavam o ridículo. Seu rosto estava exageradamente pintado e nas mãos uma folha de caderno com algumas linhas.
"Mãe! Vem escutar o poema do japonês chamado Ku" - gritou. Uma jovem mulher de olhar triste apareceu na cena, se sentou sorrindo numa das poltronas e esperou que a menina começasse a declamar. Suas caretas exaltavam ainda mais o duplo sentido da história e a mãe ria deixando que lágrimas lhe escorressem pela face. "Onde você aprendeu isto? Foi na escola é?" Não havia correção na frase, era apenas uma forma de dizer obrigada por tentar me alegrar. E sem nunca se sentir ridícula a menina buscava uma maneira de fazer sua mãe sorrir e se esquecer de sua dor.
O tempo passou e nada do que ela fizesse era suficiente. Deixou de declamar seus poemas, deixou de se vestir exageradamente, se esqueceu das piadas, não quis mais aprender a tocar violão. Passou a lavar, passar, cozinhar, cuidar dos irmãos e administrar a casa. Mas nada disso foi suficiente para ver alegria no rosto de sua mãe.
Os anos se sucederam num piscar de olhos e a tristeza que habitava a alma doente da jovem senhora, alcançou a sua também. Por vezes tentava resgatar a habilidade em fazer o outro rir, mas as obrigações e o peso do ridículo lhe apagavam as chamas.
Algo gelado lhe despertou, era a cerveja que se derramara sobre si. Levantou-se e decidiu que caminhar lhe seria mais últil. Resolveu andar por entre as flores de seu jardim, viçosas pela chuva da tarde. Uma pedra pontuda lhe feriu o dedão e se agachando para observar a agressora de perto, se deparou com uma caixa descoberta pela enxurrada.
Retirou-a com cuidado e dentro encontrou um antigo diário. Estava molhado mas ainda era possível ler, bastava aquecê-lo com o secador. As folhas ficaram enrrugadas e seu aspecto se tornou ainda mais sigiloso, já que algumas letras haviam passado de uma folha à outra pela umidade.
Era seu diário da adolescência e além de falar sobre suas angústias, registrava seus anseios. "Eu desejo encontrar alguém que eu possa amar e que me faça sorrir, que compreenda meus medos e que eu não me sinta ridícula ao seu lado". Coisas exageradas de adolescente, sonhos e desejos com aquela caixa enterrados e esquecidos.
As frases que ela agora dizia a outros com o dedo em riste estavam no capítulo das revoltas: "Você pensa que é filha de quem para sonhar com isto? Todo adolescente quer fazer teatro um dia. Vai fazer psicologia para vender caneta na praia? Você não pode ver sangue que passa mal. Você não consegue decorar as notas? Você já deu comida para os teus irmãos? Pare com isso ou vai me deixar louca. Estou cansada, não quero sair com você. Vou sair com meus amigos, eu tenho direito, eu sou nova. Você não quer que eu seja feliz. Você vai acabar me matando". Pegava-se agora repetindo algumas delas, e o pior, às pessoas queridas. Por quê?
Decidiu que ofereceria o diário em holocausto aos deuses, nem se importaria a qual. Queimá-lo seria um gesto de libertação, de oferenda pela passagem de uma era. Sim, talvez fosse realmente a crise da meia idade, a passagem para uma nova era, onde seus sonhos adormecidos eram despertados pelo beijo inocente de uma criança que agora enchia sua face de alegria. O novo despertando o velho, o novo e o velho de mãos dadas rumo à concretização de nobres ideais sem se importarem com o ridículo da vida.
(E quem não se considera incompleto e insuficiente, não deseja aquilo cuja falta não pode notar.) Platão, Banquete, 203b
(E quem não se considera incompleto e insuficiente, não deseja aquilo cuja falta não pode notar.) Platão, Banquete, 203b
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