Na faculdade eu tinha uma amiga com quem eu dividia os trabalhos, o cigarro, a cerveja e algumas de minhas frustrações. Naquela época ela morava no mesmo quintal que a mãe. Recordo-me que ela comentava as dificuldades de relacionamento com a mãe, seus problemas psiquiátricos, as brigas com seu pai, até que com o passar do tempo ela se mudou com o marido e os filhos.
Anteontem sua mãe falecera e ela está sofrendo. Isto me faz pensar no quanto estamos presos aos nossos fantasmas. Com a morte a pessoa passa a ser definitiva, ela verdadeiramente se revela. Ela é. Enquanto estamos vivos podemos dizer apenas quem fomos porque a cada dia podemos mudar, mas com a morte nos tornamos definitivos. Ela não queria que a mãe morresse, ela queria que a mãe mudasse.
Penso se sinceramente conseguimos enxergar as mudanças das pessoas. Mesmo que ela mude, ficamos presos às experiências que tivemos no passado. Mesmo que a minha mãe passe a ser a pessoa mais afetuosa e atenta do mundo, eu ainda estarei presa à quando ela me deixou, às vezes em que ela me ignorava e me deixava no vácuo, sem respostas, sem explicações, rodando no desespero de minhas carências. Minha mente aprendeu a pensar pela experiência da perda, do abandono e eu sou cheia de fantasmas, cheia de medos, de mágoas e de resistências. Isto me faz pensar num cachorro que minha avó materna tinha, o Bilú. O Bilú era da minha nona, um cachorro feroz, vivia preso e todos tinham medo de ir na casa da nona por causa do Bilú, então ela decidiu doá-lo à minha avó. Ele passou a viver solto num quintal bem grande e se tornou tão dócil que podíamos montá-lo. Mas a fera continuava dentro dele e seu ponto fraco era seu rabo, se alguém mesmo sem querer pisasse em seu rabo ele automaticamente atacava e assim mordeu três vezes a minha avó. Todos as vezes ela o perdoou porque sabia que ele era um cachorro bom e não fazia por mal.
O Bilú é um grande exemplo com o qual me identifico. Eu não posso apagar minha história e preciso reeducar a minha mente, aprender a pensar do outro lado, o lado sem a corrente, o lado livre e construir uma nova história. Mas pode ser que a fera permaneça sempre aqui e que assim como o Bilú eu tenha sempre este ponto fraco. Mesmo que eu explique aos que estão ao meu lado, conte e reconte todas as minhas dores, eu apenas estarei dando ao outro a ferramenta para me machucar mais. De alguma maneira eu sempre tive o cuidado de tentar respeitar a dor do outro e preservá-lo de situações que lhe eram doloridas, não sei se consegui.
Após muita resistência tenho lido Osho e ele tem me ajudado a perceber como funciona a mente humana, principalmente a filosófica. E com minha mente filosófica pude perceber o quanto ele está certo. A mente pende de um lado a outro como o pêndulo de um relógio, ela pula de um extremo a outro, por isso não conseguimos ser felizes, é preciso sair da mente e pela meditação entrar num estado de consciência. Não tenho capacidade de repetir suas palavras, nem sei meditar, mas suas ideias me tocaram e passo a me perguntar o quanto estou presa à esquemas mentais, o quando me acostumei a ver abandono e descaso por parte das pessoas que me amam mesmo que elas não se sintam me abandonando.
Não vou agora desdenhar minha mente filosófica, foi ela quem me salvou da loucura, de destruir a minha vida, de manter um pouco da minha sanidade e de encontrar sentido para os fatos. A questão é que me acostumei a buscar respostas, a querer saber os porquês e, como diz Osho passei a ser séria demais, chata demais, sem vida, sem sorriso, sem alegrias, mas eu sobrevivi.
A mente filosófica serviu para cercear meus valores mais nobres e preservou uma parte de mim que deseja ser dança, êxtase, fantasia, música, teatro... não posso desdenhá-la. Mas quero encontrar o caminho do meio, da consciência apenas, consciência de ser um todo.
Pergunto-me se o que sinto é amor, porque o que sinto dói demais. Então escrevo, e escrever é o mais inútil de mim, faço porque gosto, porque me dá prazer, porque alivia minhas tensões e, segundo Osho precisamos viver mais o inútil: a brincadeira, o riso, algo que não tenha finalidade, porque a finalidade não importa, ninguém pode prever a finalidade, o que importa são os meios.
Isto me faz questionar se o elo afetivo mais intenso que tenho vivido não seja tão intenso justamente porque eu o interpretei como extensão me mim mesma, como a possibilidade de viver, pela vida do outro, esta inutilidade. Por mais que eu lhe pergunte qual minha importância em sua vida, a resposta não vem, porque sua mente não é filosófica. Sua escolha de vida foi pelo inútil e assim será feliz e terá o que eu não tive e será quem eu não fui. É como se neste elo eu tivesse a oportunidade de cuidar de mim mais jovem, fazer pelo outro o que eu queria que tivessem feito por mim. E agora me sinto só, absurdamente só. Alguém me disse que este elo não é saudável e esta afirmação realmente me incomoda, pode ser que agora a consciência tenha me revelado a essência desta afirmação, pois assim como uma nuvem a imagem deste relacionamento se desenha como alguém ligada ao outro por um cateter, recebendo seu sangue, numa espécie de vampirismo. Terei eu me perdido tanto em minha mente habituada à prisão das minhas sórdidas memórias que não percebi o quanto tenho me alimentado indevidamente de uma juventude que não é minha?
Eu me imaginei fazendo parte de sua vida, de seu dia a dia, projetei para um futuro próximo uma convivência que estivesse além dos muros burocráticos. Mas se eu tiver coragem de olhar, de reler os fatos, isto nunca me fora prometido. Eu cai na armadilha dos sonhos, do planejamento à qual Osho se refere. É por isso que eu estou infeliz. É como quando nos casamos e depois reclamamos dizendo que o marido mudou, na verdade ele sempre foi igual, nós quem idealizamos sua pessoa e como o fizemos mais fortes, ou poderosos ou mais bonitos do que eles são, apenas aceitaram de bom grado e deixaram passar. Mas ninguém pode sustentar suas próprias máscaras, quanto mais às que os outros nos colocam.
As minhas eu mesma coloquei, máscaras de maturidade, de seriedade, de soberba e todas caíram, ridiculamente caíram. Minhas inseguranças, meus medos, meus desesperos, minha inconstância, minha necessidade de escrever para convencer a mim mesma, meus traumas, puxa, sinto-me nua. Estou sofrendo, estou com medo, sinto falta, praticamente tenho crises de abstinência, o coração dispara, a boca seca e a respiração fica ofegante. São provavelmente os sintomas do desligamento e do corte de uma relação que me torna um parasita que suga a vida do outro.
Tudo isso comecei pela morte da mãe da minha amiga, talvez porque este seja o meu medo: a morte. Não necessariamente minha morte física, mas a morte de um elo. Eu sei que para quem tem fé, a morte é apenas uma passagem e, a fé está para além da minha mente filosófica, mas eu quero fazer a experiência, eu quero me lançar neste vazio escuro, eu quero que o pêndulo de meu relógio balance para o outro lado e eu encontre o caminho do meio.
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