Resolveu
então preparar uma sementeira especial. Partiu do princípio de que as trataria
da mesma maneira que das outras, só que em separado para observar as
diferenças. Fez a sementeira, preparou a terra e carinhosamente lançou as
sementes. O que ele não percebeu é que algumas sementes caíram na sementeira
comum de cenouras.
Os dias se passaram. As sementes germinaram
e aos poucos rompiam a terra, sensíveis e frágeis, mas vitoriosas. Todos os dias as visitava e as mantinha
sempre cobertas por terra, as saciava
com água pura do poço e as cobria para os pássaros não as molestarem.
Aparentemente, até então, nenhuma diferença era notada no canteiro das
cenorrabas. Estavam crescendo.
Quando finalmente atingiram a altura
ideal foram transplantadas para canteiros maiores e totalmente abertos. Era o
momento de abandonar o berço para tornarem-se adultas até atingirem a
maturidade, serem colhidas e vendidas na feira.
Tanto as cenouras como as beterrabas
são raízes. Elas se desenvolvem embaixo da terra, apenas suas folhas são
vistas. O cultivador vem e as arranca da terra. É fascinante para os sentidos.
Ao saírem da terra elas exalam um aroma inebriante, um cheiro doce. Se fosse
possível colocar num frasco certamente viraria perfume, e dos caros. Ela sabe
que é chegada à maturidade e nem fica triste porque está sendo colhida. Sabe
que sofrerá uma transformação porque quando alguém a consome ela se transforma
em sangue, em vida.
As semanas se passavam normalmente
nos canteiros. As cenorrabas cresciam. Eram bastante diferentes. As cenouras
são finas, compridas e alaranjadas, as beterrabas são redondas, grossas e
vermelhas. As cenorrabas nasciam desbotadas, nem alaranjadas nem avermelhadas,
nem finas nem grossas, nem redondas nem compridas. No canteiro não havia nenhum
problema, todas eram iguais e não se estranhavam, mas em compensação, no
canteiro de cenouras, aquelas que caíram por acaso, também cresceram e causaram
uma confusão danada.
Uma das cenouras começou a comentar
com a vizinha:
- Cenourita, você não acha que
aquela cenoura da esquina direita é um tanto diferente?
- Eu acho, ela nem se parece
conosco. Veja só a cor dela. E a forma é estranha.
- Ela também não é de conversar
muito.
- Tem panca de metida – falou outra
cenoura, dona Cenourola.
- Por que ao invés de ficarem
fofocando vocês não tentam fazer amizade com ela? – perguntou Cenourão.
- Não é fofoca, são apenas
comentários – se defendeu Cenourita – mas se este é o problema eu vou tentar.
Cenourita na verdade não gostava
muito daquela cenoura estranha. Mas não custava nada tentar se aproximar. Foi
chegando perto e educadamente falou:
- Oi? Eu sou Cenourita. E você?
- Ooooooiiiiiiiiiii. Eu sou
Cenorrabatildeeeeeeee.
Cenourita ficou arrepiada. Aquela
cenoura, aquela coisa estranha tinha uma voz horrível. E aquele nome? Era uma
mistura de cenoura, com beterraba, com nome, muito estranha. O medo tomou conta
de Cenourita, mas a curiosidade era maior. Então tremendo continuou o diálogo:
- Muito prazer Cenorrabatilde. O dia
está ensolarado hoje, né? Olha como estou suada – o suor de Cenourita era de
pavor.
- O que é muito prazer? – falou
Cenorrabatilde com sua voz horripilante.
As outras cenouras acompanhavam
atentamente o diálogo. Estavam pasmadas com o que viam e ouviam. Que cenoura estranha.
Ela seria realmente uma cenoura? Cochichavam continuamente. Ela nem sabia o que
é muito prazer. Será que não falava a nossa língua? Enquanto isso, Cenourita
tentava levar adiante a conversa:
- Bom, muito prazer quer dizer que
eu... eu, estou feliz,..., é.....contente e alegre, por te conhecer. Deu pra
entender?
- O que é conteeeente? Aleeeeegre?
Feliiiiiz?
- Caramba!!! – exclamou Cenourão –
Esta cenoura é a encarnação da burrice. Ela nem sabe o que é contente, alegre e
feliz? Será que ela não tem sentimentos?
Ninguém acreditava no que acabavam
de ouvir. Cenourita ficou tão atrapalhada que se despediu e saiu de perto. Logo
o canteiro todo só comentava um assunto: a cenoura esquisita. Parecia não haver
explicação para tal fato. Alguns defendiam que na verdade ela nem seria uma
cenoura e resolveram realizar uma assembléia para discutir a questão. Também
decidiram fazer uma visita aos outros canteiros para ver se aquela cenoura
estranha era na realidade outro tipo de legume que por acaso caíra ali.
Foi organizada uma comissão de
cenouras espiãs que sairiam à noite para não serem percebidas pelo cultivador.
Deveriam voltar antes das 3h00 da madrugada. Então, à meia-noite pularam para o
canteiro vizinho, um canteiro de berinjelas. Assustadas as berinjelas quiseram
logo saber o motivo daquela espionagem e ficaram abismadas e não sabiam o que
dizer a respeito, mas sugeriram às cenouras que fossem ao canteiro das
beterrabas também, talvez soubessem de algo. Sem perder tempo as
cenouras-espiãs saltaram para os canteiros
- Temos percebido certa mudança no
comportamento de nosso cultivador, ele parece apreensivo desde que plantou
sementes perfeitas naquele canteiro afastado. Fica mais tempo debruçado sobre
as tais cenorrabas – explicou Beterrelsom.
- Cenorrabas?! – exclamaram as
espiãs.
- Cenorrabas é uma mistura de
cenoura com beterraba. Fiquei sabendo disso porque numa dessas noites sai para
dar uma voltinha e li a placa de identificação do canteiro: “Cenorrabas”. Não
cheguei a vê-las, não dava tempo, tinha que voltar antes das 3h00.
- Mas o que uma coisa tem a ver com
a outra? – questionou Cenourita.
- Pode ser que a tal da cenoura
estranha na verdade seja uma cenorraba.
De repente virou um cochicho geral:
- Que horror!
- Mas como será isso?
- Então elas devem ser monstros...
- Silêncio! Silêncio! – pedia
Beterrelsom. – Acalmem-se. Não temos tempo para comentários. Precisamos pensar
melhor, obter mais informações e descobrir quem realmente são essas novas
plantas entre nós. Talvez seja outra espécie.
Novo burburinho:
- Seriam alienígenas que querem
dominar os canteiros?
- Nossa! Então é o fim!!!
- Vão nos liquidar com armas
bacteriológicas...
Tantas eram as suposições que o
líder precisou intervir novamente e agora com mais rigor:
- Calados, todos calados!!! Deixem
de asneiras. Não sabemos exatamente o que está acontecendo, antes de sairmos
por aí falando qualquer coisa, precisamos pesquisar, ter certeza.
Foi então que uma das beterrabas
sugeriu:
-
E se algumas de nós nos juntássemos às cenouras espiãs, roubássemos a placa de identificação
das cenorrabas para saber mais?
Todas concordaram com a idéia, mas
naquela noite seria impossível porque já eram 2h45, logo o cultivador estaria
acordado para fazer a colheita. Voltariam para o canteiro e esperariam a noite
seguinte.
Naquela madrugada a terra revirada
despertou a atenção do agricultor:
- Será que o Lui passou por cima do
canteiro? – falou consigo mesmo, depois o arrumou amorosamente, desejou um
bom-dia a todas e saiu para mais um dia de festa, quer dizer, de feira.
Finalmente a noite chegara. As
espiãs se prepararam e se certificaram de que todas as luzes da casa estavam
apagadas. Na pontinha dos pés pularam dos canteiros, roubaram a placa de
identificação das cenorrabas e no canteiro das beterrabas fizeram uma leitura
em voz alta. A placa dizia:
Nome: Cenorrabas Species
Família: produzida
Época de
plantio: o ano todo
Terreno: fértil ou arenoso
Qualidade: excelente
Observação: Estas sementes foram fabricadas nos Laboratórios Semente-Fértil do
Brasil S.A. Ingredientes: sementes de cenouras e sementes de beterrabas
pasteurizadas. Inventor: Dr. J.F. Todos os direitos estão reservados a este
laboratório.
Ao término da leitura, tanto as
beterrabas quanto as cenouras não sabiam o que pensar. Algumas ficaram tão
assustadas que começaram a passar mal. Suas folhas murcharam. Deixaram de
exalar o aroma próprio. Uma confusão total. Ninguém sabia o que fazer.
- Estamos perdidos, é o nosso fim.
Seremos trocadas por esses monstruosos frutos. – diziam uns.
- Ninguém mais vai querer saber de se alimentar
de nós – diziam outros.
- Vamos morrer sem nos
transformarmos em alimento – pensavam alguns.
Logo a notícia se espalhou por toda
horta. Os boatos de novas invenções de sementes aumentaram ainda mais a
tristeza.
Para
surpresa e desespero do agricultor ao ver pela manhã sua horta, a mesma
encontrava-se toda murcha, sem vida. Nem era tempo de geada ou chuva forte,
ninguém havia entrado no terreno à noite. O que estaria acontecendo? Ele amava
tanto cada plantinha que se sentou no chão e começou a chorar. Passava a mão ora
pelas folhas murchas ora em seus cabelos brancos. Conversava com as alfaces
amareladas, as berinjelas caídas. Que desolação em sua horta. Mas, por quê?
(Continua...)
(Continua...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Quer compartilhar tua opinião?