A vida na
casa transcorria enquanto na horta Esperança uma verdadeira revolução emergia.
Como os olhos humanos estavam perdendo a leitura do coração, não conseguiam
enxergá-la, somente o cultivador por vezes sentia algo sem exatamente
compreender o quê.
Após
o forte impacto que sofreram as cenouras e as beterrabas ao descobrirem a
verdadeira identidade das cenorrabas, uma tristeza mortal atingiu toda espécie.
Foi um contágio. Os tomates, as cebolas, as pimentas, todas as verduras e
legumes da horta Esperança sofreram um surto existencial. Sentiram-se
arrasadas, humilhadas, trocadas, logo elas, que sempre, durante toda história
da humanidade, serviam de alimento aos viventes. Uma fortíssima depressão matou-as
pouco a pouco.
Mas
o agricultor não desistia e plantava novas sementes que não vingaram porque
suas ancestrais deixaram na terra a mensagem da revolta, da tristeza e da
humilhação. Geneticamente recebiam as mensagens e acabavam não conseguindo
superar os traumas herdados. Algumas verduras mais altruístas duravam um pouco
mais, sem, no entanto, cumprirem a principal missão herbácea: ser alimento. Várias
foram as tentativas e nada se conseguiu.
Os
únicos que restavam eram o velho pinheiro e a sábia roseira que atentamente a tudo
observavam. Costumavam fazer comentários sobre os acontecimentos; de certa
forma temiam ser atingidos.
-
Pinheiro Silvestre, tenho observado atentamente as mudanças significativo -
estruturais que vem acontecendo neste, até então, tranqüilo estabelecimento.
-
Eu também, Rosa-Flor. Sabe que isto me amedronta? Você já pensou se esses cientistas
resolvem inventar um coconheiro?
-
Coconheiro? – perguntou Rosa-Flor sem conter o riso.
-
É, o Coconheiro seria uma mistura de coqueiro com pinheiro. Seria uma árvore
bastante exótica.
-
É mesmo! Eles podem passar a gostar muito de criar novas espécies e acabar com
nossa identidade. Já pensou nossas conversas: “Antes de você ser um coconheiro
você se sentia normal?”, ou então, “Qual parte de você é mais coqueiro e qual
parte é mais pinheiro?” – falava e gesticulava Rosa-Flor.
-
Você já pensou se eles inventam a mistura de uma rosa com uma margarida? Daria
uma rosarida. Seria uma margarida cheia de espinhos.
Rosa-Flor
parou de brincar porque sentiu sua intimidade, sua essência ser invadida pelas
palavras do Pinheiro e seriamente falou:
-
Sabe Pinheiro Silvestre, o que uma margarida faria com espinhos? Ela é por
natureza uma flor dócil e singeleza. Destacasse não pela beleza, mas pela
simplicidade e fácil adaptação em diversos solos. Nós, rosas sim, precisamos de
espinhos. Somos encantadoras, formosas, imponentes e sedutoras. Seríamos
facilmente arrancadas se não tivéssemos como nos defender. É natural em nós
termos espinhos.
Pinheiro
Silvestre sentiu o vento lhe balançar, excitando-lhe os galhos e fazendo-o
perceber seu próprio olor. Olhou para a amiga e suspirando falou-lhe:
-
Tudo isso é muito triste Rosa-Flor. O que dirão nossos descendentes? O que
saberão sobre si mesmos? Nós conhecemos nossas origens e as mudanças naturais
que ocorreram ao longo da história, nossa evolução. E estes aí? O que sabem de
si?
Quase
nada podiam fazer para mudar a situação, mas nem por isso deixavam de
comentá-la, de refletir sobre ela. Por algum tempo a situação ficou estável. As
novas espécies tomaram conta de toda horta reproduzindo-se abundantemente.
Pareciam
já serem as donas da história, até que um dia Pardal trouxe sem querer uma
semente de sempre-viva que caiu no canteiro das cenorrabas, antigo canteiro das
cenouras, e nasceu, cresceu e floriu. Era uma Sempre-Viva cor de rosa. Chama
sempre-viva porque mesmo depois de muito tempo permanece com aspecto de viva. Diferentemente
das outras flores que murcham, continua sempre jovial mesmo quando velha.
Em
pouco tempo de vida, Sempre-Viva informou-se sobre a realidade de Esperança.
Provinda de outras terras, estranhou um pouco, logo se ambientando. Não era
muito conversadeira como Rosa-Flor, gostava mais de observar e refletir. Apesar
de se acostumar, não aceitava totalmente o fato. Queria fazer algo, porque
sentia saudades dos velhos conhecidos: a alface, a chicória, o agrião e até do
espinafre. Aquelas verduras não se conheciam direito, era estranha a amizade,
misturavam os assuntos e desconheciam a própria origem. Um dia teve uma idéia:
conseguir uma semente original. Esperançosa conversou com Pinheiro Silvestre e
Rosa Flor:
-
Eu acho ótima! – exclamou Rosa-Flor.
-
Mas como vamos consegui-la? – questionou Pinheiro.
-
É simples: pedimos ao Pardal que traga no bico algumas sementes de outras
hortas, assim como me trouxe – explicou.
Os
amigos aceitaram a idéia. Conversaram com Pardal que entendeu a situação,
prometeu se esforçar, mas não garantiu nada, dizendo que estava cada vez mais
difícil encontrar uma horta com tais sementes. Mas prometeu ajudar.
O
tempo passava tranqüilamente. A cada entardecer esperavam Pardal chegar. As
esperanças já se esvaiam quando o avistaram chegar cambaleando com as penas
arrepiadas.
-
O que aconteceu? – perguntaram.
Deitando-se
na terra com as asas abertas, respirando ofegante e sangrando numa das
perninhas explicou:
-
Tô arrebentado. Vim de uma horta a quilômetros de distância daqui. Consegui
encontrar uma sementeira com sementes originais. Claro que ela estava bem
protegida. Tive que ficar horas observando o momento de atacar. Quando os
agricultores distraíram, fui sorrateiramente e roubei umas sementes de cenoura.
Tive tanto azar que meu pé ficou preso na tela. Puxei, puxei e nada. De repente
os homens chegaram...
Sempre-Viva,
Rosa-Flor e Pinheiro Silvestre nem piscavam ao ouvir a narração. Pardal parava
várias vezes para tomar fôlego e continuar a explicação:
-
E daí? E daí? – questionaram.
-
E daí, que um homem com cara de tomate chegou perto de mim dizendo: “Olha só
esse ladrãozinho!” Me pegou na mão apertando minhas asas. Eu tentei escapar,
mas as mãos dele eram gordas e fortes, além do mais minha perna tava ferida.
Pensei: “Vou morrer! Esse cara de bolacha vai acabar comigo”. Acho que se eu
fosse uma rolhinha a essa hora estaria nu num espetinho, com uma amora na boca sendo rolado numa churrasqueira.
-
Credo Pardal! Não fala assim – interrompeu Pinheiro Silvestre. – Felizmente
você está aqui conosco, são e salvou, com uns arranhões, mas vivo.
-
Como você conseguiu escapar? – insistiu Rosa-Flor.
Mais
descansado continuou:
-
Bom, o homem me levou pra casa dele onde tinha uma gaiola vazia. Fui colocado
naquela gaiola horrível. Não consigo nem lembrar, é muito triste para um
pássaro ficar numa gaiola. É uma agressão à nossa natureza, nascemos livres para
enfeitarmos o céu e esses malvados nos prendem. Depois ficam olhando pra nós
com aqueles olhos arregalados e aqueles dentões amarelos dizendo: “Canta
passarinho, canta passarinho,...” Tem uns que assobiam com bafo de onça
mostrando como devemos fazer, como cantar. Aquele bafo deixa qualquer um tonto.
Sem falar nos pirralhos que batem a vassoura na gaiola quando não alcançam.
Meus amigos: a gaiola é o inferno dos pássaros!
-
Mas, se você foi preso, como consegui escapar e chegar até aqui? – questionou
Pinheiro.
O
passarinho aventureiro já estava começando a gostar de toda aquela preocupação.
Fez ar de valente e respondeu:
-
Meu amigo Pinheiro, por um tempo fiquei deprimido, principalmente quando vi uma
garotinha sair do banho com uma enorme toalha enrolada na cabeça vindo ao meu
encontro fazendo caretas. Fiquei tão assustado que encolhi na gaiola pedindo aos
céus que me livrasse daquela situação. E foi graças ao Carlinhos, o caçulinha
da família, que distraidamente deixou a gaiola aberta, que pude escapar.
-
Mas, afinal de contas você trouxe ou não a semente? – perguntou inquieta
Rosa-Flor.
-
Ah, é! Claro, eu consegui a semente, mas só uma, e é semente de cenoura. Está
aqui.
Enquanto
falava tirou de debaixo das asas uma pequenina semente. Todos ficaram
estarrecidos ao verem-na.
-
Como é linda! - exclamou um.
-
Eu já tinha me esquecido do brilho original. - exclamou outro.
-
Vamos plantá-la logo!
-
Ainda não – afirmou Rosa-Flor para espanto de todos.
-
Não?! – exclamaram em coro.
Com
a firmeza da sabedoria, Rosa-Flor explicou:
-
Não podemos nos arriscar assim. O solo já se acostumou às sementes produzidas,
se simplesmente plantarmos a cenoura, ela correrá o risco de não nascer.
-
Então o que vamos fazer? – perguntou Pardal.
-
Vamos prepará-la. Primeiro conversaremos com ela e lhe explicaremos sua real
origem. Daremos a ela por alguns dias o máximo de amor e carinho. Será uma
pré-germinação. Mas não podemos nos esquecer da terra. Escolheremos uma parte
de Esperança que não tenha sido cultivada para aí plantarmos esta linda semente
que se chamará “Semente do Amanhã”. Que tal?
(Continuação...)
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