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sábado, 17 de agosto de 2013

6. Esperança reage



        A vida na casa transcorria enquanto na horta Esperança uma verdadeira revolução emergia. Como os olhos humanos estavam perdendo a leitura do coração, não conseguiam enxergá-la, somente o cultivador por vezes sentia algo sem exatamente compreender o quê.

Após o forte impacto que sofreram as cenouras e as beterrabas ao descobrirem a verdadeira identidade das cenorrabas, uma tristeza mortal atingiu toda espécie. Foi um contágio. Os tomates, as cebolas, as pimentas, todas as verduras e legumes da horta Esperança sofreram um surto existencial. Sentiram-se arrasadas, humilhadas, trocadas, logo elas, que sempre, durante toda história da humanidade, serviam de alimento aos viventes. Uma fortíssima depressão matou-as pouco a pouco.

Mas o agricultor não desistia e plantava novas sementes que não vingaram porque suas ancestrais deixaram na terra a mensagem da revolta, da tristeza e da humilhação. Geneticamente recebiam as mensagens e acabavam não conseguindo superar os traumas herdados. Algumas verduras mais altruístas duravam um pouco mais, sem, no entanto, cumprirem a principal missão herbácea: ser alimento. Várias foram as tentativas e nada se conseguiu.

Os únicos que restavam eram o velho pinheiro e a sábia roseira que atentamente a tudo observavam. Costumavam fazer comentários sobre os acontecimentos; de certa forma temiam ser atingidos.

- Pinheiro Silvestre, tenho observado atentamente as mudanças significativo - estruturais que vem acontecendo neste, até então, tranqüilo estabelecimento.

- Eu também, Rosa-Flor. Sabe que isto me amedronta? Você já pensou se esses cientistas resolvem inventar um coconheiro?

- Coconheiro? – perguntou Rosa-Flor sem conter o riso.

- É, o Coconheiro seria uma mistura de coqueiro com pinheiro. Seria uma árvore bastante exótica.

- É mesmo! Eles podem passar a gostar muito de criar novas espécies e acabar com nossa identidade. Já pensou nossas conversas: “Antes de você ser um coconheiro você se sentia normal?”, ou então, “Qual parte de você é mais coqueiro e qual parte é mais pinheiro?” – falava e gesticulava Rosa-Flor.

- Você já pensou se eles inventam a mistura de uma rosa com uma margarida? Daria uma rosarida. Seria uma margarida cheia de espinhos.

Rosa-Flor parou de brincar porque sentiu sua intimidade, sua essência ser invadida pelas palavras do Pinheiro e seriamente falou:

- Sabe Pinheiro Silvestre, o que uma margarida faria com espinhos? Ela é por natureza uma flor dócil e singeleza. Destacasse não pela beleza, mas pela simplicidade e fácil adaptação em diversos solos. Nós, rosas sim, precisamos de espinhos. Somos encantadoras, formosas, imponentes e sedutoras. Seríamos facilmente arrancadas se não tivéssemos como nos defender. É natural em nós termos espinhos.

Pinheiro Silvestre sentiu o vento lhe balançar, excitando-lhe os galhos e fazendo-o perceber seu próprio olor. Olhou para a amiga e suspirando falou-lhe:

- Tudo isso é muito triste Rosa-Flor. O que dirão nossos descendentes? O que saberão sobre si mesmos? Nós conhecemos nossas origens e as mudanças naturais que ocorreram ao longo da história, nossa evolução. E estes aí? O que sabem de si?

Quase nada podiam fazer para mudar a situação, mas nem por isso deixavam de comentá-la, de refletir sobre ela. Por algum tempo a situação ficou estável. As novas espécies tomaram conta de toda horta reproduzindo-se abundantemente. 

Pareciam já serem as donas da história, até que um dia Pardal trouxe sem querer uma semente de sempre-viva que caiu no canteiro das cenorrabas, antigo canteiro das cenouras, e nasceu, cresceu e floriu. Era uma Sempre-Viva cor de rosa. Chama sempre-viva porque mesmo depois de muito tempo permanece com aspecto de viva. Diferentemente das outras flores que murcham, continua sempre jovial mesmo quando velha.

Em pouco tempo de vida, Sempre-Viva informou-se sobre a realidade de Esperança. Provinda de outras terras, estranhou um pouco, logo se ambientando. Não era muito conversadeira como Rosa-Flor, gostava mais de observar e refletir. Apesar de se acostumar, não aceitava totalmente o fato. Queria fazer algo, porque sentia saudades dos velhos conhecidos: a alface, a chicória, o agrião e até do espinafre. Aquelas verduras não se conheciam direito, era estranha a amizade, misturavam os assuntos e desconheciam a própria origem. Um dia teve uma idéia: conseguir uma semente original. Esperançosa conversou com Pinheiro Silvestre e Rosa Flor:

- Eu acho ótima! – exclamou Rosa-Flor.

- Mas como vamos consegui-la? – questionou Pinheiro.

- É simples: pedimos ao Pardal que traga no bico algumas sementes de outras hortas, assim como me trouxe – explicou.

Os amigos aceitaram a idéia. Conversaram com Pardal que entendeu a situação, prometeu se esforçar, mas não garantiu nada, dizendo que estava cada vez mais difícil encontrar uma horta com tais sementes. Mas prometeu ajudar.
O tempo passava tranqüilamente. A cada entardecer esperavam Pardal chegar. As esperanças já se esvaiam quando o avistaram chegar cambaleando com as penas arrepiadas.

- O que aconteceu? – perguntaram.

Deitando-se na terra com as asas abertas, respirando ofegante e sangrando numa das perninhas explicou:

- Tô arrebentado. Vim de uma horta a quilômetros de distância daqui. Consegui encontrar uma sementeira com sementes originais. Claro que ela estava bem protegida. Tive que ficar horas observando o momento de atacar. Quando os agricultores distraíram, fui sorrateiramente e roubei umas sementes de cenoura. Tive tanto azar que meu pé ficou preso na tela. Puxei, puxei e nada. De repente os homens chegaram...

Sempre-Viva, Rosa-Flor e Pinheiro Silvestre nem piscavam ao ouvir a narração. Pardal parava várias vezes para tomar fôlego e continuar a explicação:

- E daí? E daí? – questionaram.

- E daí, que um homem com cara de tomate chegou perto de mim dizendo: “Olha só esse ladrãozinho!” Me pegou na mão apertando minhas asas. Eu tentei escapar, mas as mãos dele eram gordas e fortes, além do mais minha perna tava ferida. Pensei: “Vou morrer! Esse cara de bolacha vai acabar comigo”. Acho que se eu fosse uma rolhinha a essa hora estaria nu num espetinho, com uma amora na  boca sendo rolado numa churrasqueira.

- Credo Pardal! Não fala assim – interrompeu Pinheiro Silvestre. – Felizmente você está aqui conosco, são e salvou, com uns arranhões, mas vivo.

- Como você conseguiu escapar? – insistiu Rosa-Flor.

Mais descansado continuou:

- Bom, o homem me levou pra casa dele onde tinha uma gaiola vazia. Fui colocado naquela gaiola horrível. Não consigo nem lembrar, é muito triste para um pássaro ficar numa gaiola. É uma agressão à nossa natureza, nascemos livres para enfeitarmos o céu e esses malvados nos prendem. Depois ficam olhando pra nós com aqueles olhos arregalados e aqueles dentões amarelos dizendo: “Canta passarinho, canta passarinho,...” Tem uns que assobiam com bafo de onça mostrando como devemos fazer, como cantar. Aquele bafo deixa qualquer um tonto. Sem falar nos pirralhos que batem a vassoura na gaiola quando não alcançam. Meus amigos: a gaiola é o inferno dos pássaros!

- Mas, se você foi preso, como consegui escapar e chegar até aqui? – questionou Pinheiro.
O passarinho aventureiro já estava começando a gostar de toda aquela preocupação. Fez ar de valente e respondeu:

- Meu amigo Pinheiro, por um tempo fiquei deprimido, principalmente quando vi uma garotinha sair do banho com uma enorme toalha enrolada na cabeça vindo ao meu encontro fazendo caretas. Fiquei tão assustado que encolhi na gaiola pedindo aos céus que me livrasse daquela situação. E foi graças ao Carlinhos, o caçulinha da família, que distraidamente deixou a gaiola aberta, que pude escapar.

- Mas, afinal de contas você trouxe ou não a semente? – perguntou inquieta Rosa-Flor.

- Ah, é! Claro, eu consegui a semente, mas só uma, e é semente de cenoura. Está aqui.

Enquanto falava tirou de debaixo das asas uma pequenina semente. Todos ficaram estarrecidos ao verem-na.

- Como é linda! - exclamou um.

- Eu já tinha me esquecido do brilho original. - exclamou outro.

- Vamos plantá-la logo!

- Ainda não – afirmou Rosa-Flor para espanto de todos.

- Não?! – exclamaram em coro.

Com a firmeza da sabedoria, Rosa-Flor explicou:

- Não podemos nos arriscar assim. O solo já se acostumou às sementes produzidas, se simplesmente plantarmos a cenoura, ela correrá o risco de não nascer.

- Então o que vamos fazer? – perguntou Pardal.

- Vamos prepará-la. Primeiro conversaremos com ela e lhe explicaremos sua real origem. Daremos a ela por alguns dias o máximo de amor e carinho. Será uma pré-germinação. Mas não podemos nos esquecer da terra. Escolheremos uma parte de Esperança que não tenha sido cultivada para aí plantarmos esta linda semente que se chamará “Semente do Amanhã”. Que tal?

(Continuação...)

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