O sol está quente demais lá fora. Hoje reconheço melhor minhas limitações e me permito um descanso enquanto a natureza trabalha. Logo cedo preparei a tesoura e comecei a retirar algumas folhas mortas do jardim, desejosa de podar a grama e melhorar-lhe o visual.
Quando estou trabalhando no jardim, meia hora é suficiente para me despertar reflexões e visões sobre aspectos da minha vida. Nenhum templo que entrei e me curvei conseguiu tal feito em mim. O meu jardim é o meu templo, o lugar do meu encontro com o sagrado, o espaço de expressão de liberdade da minha alma. Percebo que de fato não poderia ser outro, porque o paraíso, o Éden é representado por um jardim.
Eu não sou boa em investigações, mas alguns pequenos detalhes me levam a crer que você passa por aqui, que você sabe da minha vida e que você quer um reencontro, porque no fundo você sabe, que das pessoas a quem prejudicou, eu sou a que vai te dar a certeza de que você foi perdoada, que você foi compreendida na tua loucura. Porque eu não consigo acreditar que as pessoas sejam más voluntariamente, por mais que o mundo diga, por mais que os fatos gritem. Eu posso acreditar que as pessoas sejam doentes, doentes mentais, doentes da alma, doentes dos sentimentos, mas não posso acreditar que optem pelo mal. Assim como Sócrates, penso que as pessoas fazem o mal por não saberem reconhecer o bem, inclusive àquelas que juram somente fazer o bem, porque ninguém está isento de si mesmo e de sua própria ignorância.
Não te julgo, nem te condeno. Posso entender que assim como eu, você quis construir o teu jardim, você quis voltar ao Éden, você quis reproduzi-lo neste mundo. Posso entender que você assumiu para si o posto de jardineira-mor. Posso entender que muitas se encantaram com o teu jardim e se propuseram a fazer parte dele, sonharam o teu sonho e aceitaram trabalhar ao teu lado. Muitas quiseram descansar no teu jardim, buscaram paz, buscaram amor, buscaram refúgio, inclusive eu.
Quase dezoito anos depois, percebo que teu erro, teu maior pecado foi a falta de percepção de que um jardim não precisa de ninguém para continuar vivo, a água, o sol, a terra e a vida vem de Deus, e é tudo o que ele precisa para florir. Você preparou a terra, você plantou a grama, você plantou os arbustos, plantou as flores e o decorou. Mas o teu erro foi permanecer na porta, analisando e julgando quem teria o direito de entrar, por onde deveriam andar e quando deveriam sair. Aos poucos você se transformou num cão de guarda raivoso, permanecendo com a tesoura de poda empunhada, mais ameaçando do que acolhendo.
Somos nós quem precisamos do jardim e não ele de nós. O que eu chamo de jardim, você chama de Reino de Deus, mas não vou entrar em discussões teológicas com você, até porque eu estudei teologia e você não. Pode salivar sobre minha arrogância, mas não foi a teologia quem mais me ensinou, foi você. Você foi a pessoa que mais me ensinou onde alguém pode chegar quando não percebe que a poda não pode ser feita na primavera, mas sim no inverno. Que todos temos nossos momentos de inverno, é da natureza, foi assim que Deus a fez. A poda deve ser feita no inverno porque é o momento natural para isso, e ela é um gesto de amor. Com a planta mais interiorizada eu posso ver e identificar melhor as tiriricas e retirá-las sem machucar, sem danificar a planta.
Eu cheguei até você na juventude sim, mas num intenso inverno da minha vida, e você me podou sempre na primavera, me deixou no talo e depois me descartou com a alegação de não produzir frutos. Me perguntei durante dezoito anos, por quê? Eu desejei te odiar, desejei te desejar em dobro todo o mal que você me fez, mas eu não consegui.
Você me ensinou a ver a presença de Deus em tudo, a entender a chuva como Sua confirmação de um propósito bom. Me ensinou a enxergar as borboletas como anjos de Deus. Tudo ao meu redor se tornou simbólico e metafórico, e às vezes acho que exagero, que preciso relaxar e enxergar somente o que vejo. Você mesma se tornou simbólica demais para mim.
São quase dezoito anos de busca, de angústia por uma resposta. E somente agora começo a entender, porque agora eu te despi do simbólico, agora eu posso te enxergar como gente, como alguém profundamente doente dos sentimentos, como alguém que precisa de ajuda. A tua "loucura" em anunciar a Jesus Cristo e não a você te transformou num ídolo, em alguém que deve ser temida, escutava, mas que não pode ser amada. E neste raciocínio insano e cultivando uma inveja devastadora, você destruiu o amor entre as pessoas que viviam com você, que estavam ao teu lado, que também acreditavam e queriam cultivar o jardim, que foram tuas parcerias nos momentos mais difíceis, que aceitaram tua posição de jardineira-mor mesmo sabendo das tuas limitações porque confiaram na tua capacidade. E a ironia disso tudo, é que você nunca abriu mão do teu amor secreto, e neste ponto eu te admiro, porque você preferiu perder tudo a renunciá-lo.
Eu entendo que você não tivesse afeto espontâneo por mim, isto é normal, e hoje entendo que somente uma pessoa doente dos sentimentos, afastaria, dividiria pessoas afins, pessoas amigas, que se estimavam. O teu pavor em não "se anunciar" te tornou em minha vida e na de outras, mais presente do que Deus. Você fez o contrário do que anunciou. E por quê? Minha teoria é a de que pessoas como você, estarão sempre fadadas a não se sentirem amadas, por isso, suas atitudes as torna pessoas admiradas, respeitadas e idolatradas, mas não amadas.
De alguma forma eu me pareço a você, por isso te fora tão difícil me aceitar, me ajudar, fazer diferença positiva na minha vida. Pensei nisso várias vezes, mas me negava a aceitar, hoje me sinto livre para compreender que podemos nos parecer, mas não significa que construiremos a mesma história. Eu também já machuquei muitas pessoas que desejaram descansar no meu jardim, eu as afastei de mim, não as deixei que me amassem, por mais que eu desejasse ser amada, você entende desta loucura, não é mesmo?
A vida é generosa e eu não tenho mais medo de acreditar em Deus, um Ser superior, a quem denominamos Deus, e que Jesus foi um homem extraordinário, possivelmente o que mais entendeu e anunciou que somos filhos de Deus, nada mais. Você não pode acreditar nisso, senão a tua vida terá sido em vão, e eu te respeito e te admiro por isso. Mas eu estou livre, e graças a você, que me devolveu ao mundo "sem luz", eu estou livre para amar e me deixar amar, porque alguém me pegou pela mão, alguém de carne e osso, com calor e cheiro, com o coração inocente, e concluiu o que outros haviam começado, fez o que você teve a oportunidade de fazer e não fez, quebrou as minhas defesas, buscou refúgio em mim e me refugiou, me ensinou a me sentir segura e amada, porque se sentir amada é uma aprendizagem, a gente não nasce sabendo, é por isso que precisamos de outras pessoas em nossas vidas. Esta é uma lição que você não aprendeu, por isso não consegue ensinar, por mais que fale.
Eu não quero me tornar ídolo, nem estar tão presente na vida e nos pensamentos de alguém de forma que ocupe um espaço quase sagrado. É por isso que hoje, quando alguém que se encanta com o meu jardim deseja buscar descanso, eu a recebo e nos tratamos de igual para igual, reconheço meus medos e inseguranças, mesmo sendo mais velha e na "obrigação" de instruir. Assumo minhas limitações, peço desculpas, reconheço minha pequenez. Eu também entendo que para você isto seria difícil demais, tudo bem, eu te perdoo mesmo assim, não por você, mas por mim, porque eu não quero mais viver com o sentimento de vítima.
Espero te encontrar sentada debaixo da flamboyan para olhar em teus olhos e você ver que não há mais mágoa, nem ressentimento, quero enxergar o ser humano de olhos de carne e não o ídolo de olhos de vidro. Mas se você não tiver forças para isso, eu deixarei este texto na caixa de correio para que você agora o tenha porque eu quis que você o encontrasse e não porque você violou a minha intimidade. Até amanhã.
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